Site do jornal “O Globo”
Berlim, 15 de agosto de 2010
Repórter: Graça Magalhães-Ruether
Entre elogios e críticas ao Brasil, iraniana Nobel da Paz pede pressão internacional para salvar Sakineh
BERLIM – Prêmio Nobel da Paz em 2003, a advogada iraniana Shirin Ebadi, de 63 anos, acha que o presidente Lula ainda não sabe bem que posição adotar em relação ao Irã. Afinal, lembra ela, de um lado, ele apoia as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas contra Teerã; de outro, toma a iniciativa unilateral de negociar com o país. Ela critica Lula também num episódio ligado ao sindicalista iraniano Mansour Ossanla, que está preso. Como considerava o presidente brasileiro um defensor dos sindicalistas, Shirin pediu que Lula, em sua última viagem ao Irã, visitasse a família de Ossanla, mas o apelo não foi atendido. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Shirin elogiou, porém, a tentativa brasileira de pressionar o Irã no caso de Sakineh Ashtiani, iraniana condenada à morte por apedrejamento. O aumento da pressão internacional poderia influenciar na anulação da pena de morte, opina a advogada, que desde as eleições presidenciais do Irã em 2009 vive na Europa, pois teme ser presa se voltar ao seu país. “A situação dos direitos humanos piorou muito”, afirma, lembrando que a situação da mulher é insuportável desde a revolução islâmica. Embora 65% dos estudantes nas universidades sejam mulheres, as leis do país estabelecem que “a vida de uma mulher vale apenas a metade da de um homem”. O caso de Sakineh traz lembranças amargas para Shirin. Pouco depois da revolução, ela defendeu uma acusada de adultério. E de nada valeram os protestos que organizou contra a execução. A mulher foi morta por apedrejamento.
O Globo: Como a senhora viu a negociação do Brasil com o Irã na questão atômica?
Shirin Ebadi: Para mim, o presidente Lula ainda não sabe direito que posição quer adotar em relação ao Irã. De um lado, diz-se comprometido a seguir as decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. De outro, toma a iniciativa unilateral de ir a Teerã negociar com o Irã.
” Já defendi uma mulher em situação semelhante à de Sakineh Ashtiani, uma mulher que foi condenada à morte por apedrejamento. Ela vivia em Teerã, era muito infeliz no casamento e um dia encontrou um ex-namorado, com quem teve uma relação extraconjulgal “
O Globo: O Brasil ofereceu asilo político a Sakineh Ashtiani, mas o embaixador do Irã em Brasília negou a existência oficial dessa oferta. Na sua opinião, a confusão é um mal-entendido diplomático ou uma jogada política do Irã?
Shirin: Trata-se de algo entre dois estados. Não quero atuar como juíza nesse caso nem comentar. Mas vejo como positiva a tentativa brasileira de interferir a favor da condenada à morte. O mundo inteiro deve tentar intervir para que Sakineh Ashtiani não seja executada. Pela minha experiência, eu diria que, se a pressão internacional aumentar, há a chance de ela sobreviver, de a sentença de morte ser anulada. No passado, o regime iraniano já mudou de posição claramente reagindo à pressão de fora.
O Globo: No seu trabalho em Teerã, já foi advogada de defesa de mulheres condenadas ao apedrejamento?
Shirin: Já defendi uma mulher em situação semelhante à de Sakineh Ashtiani, uma mulher que foi condenada à morte por apedrejamento. Ela vivia em Teerã, era muito infeliz no casamento e um dia encontrou um ex-namorado, com quem teve uma relação extraconjulgal. Infelizmente, toda a campanha de protestos que fizemos contra a sentença não teve resultado, a mulher foi morta por apedrejamento. Foi pouco depois da revolução islâmica, e nessa época a opinião pública internacional não reagia muito aos crimes contra os direitos humanos praticados no Irã. Havia ainda a guerra fria entre o bloco leste e o Ocidente e ninguém prestava muita atenção ao que acontecia no Irã.
O Globo: Quais são, atualmente, os maiores problemas para as mulheres no Irã?
Shirin: O Irã é um país onde 65% dos estudantes nas universidades são mulheres. As mulheres são bem representadas na administração, em diferentes profissões, também nos altos escalões. Há muitas mulheres entre os professores das universidades iranianas, há muitas mulheres que trabalham como advogadas, médicas ou engenheiras. Apesar do alto nível de educação da mulher iraniana, depois da revolução foram introduzidas muitas leis que discriminam as mulheres. A vida de uma mulher vale para a lei apenas a metade do valor que tem a vida de um homem. Isso significa que se um homem e uma mulher são vítimas de uma agressão na rua, e ficam com o mesmo grau de ferimentos, a mulher recebe apenas a metade da indenização que é paga à vítima masculina. Num processo judiciário, o testemunho de um homem tem o valor do testemunho de duas mulheres. De acordo com a lei, um homem tem o direito de ter quatro esposas ao mesmo tempo. As mulheres iranianas fazem tudo o que podem contra essas leis discriminatórias. Há anos lutamos contra essa discriminação ordenada pelo Estado. Muitas das mulheres que participaram dessa luta foram presas, condenadas pela prática de atividades contra a segurança nacional. Num desses processos, onde era advogada de defesa, indaguei com ironia ao promotor: “Então, se uma mulher é contra o seu marido ter outra esposa, os americanos vão atacar o Irã”. O promotor não respondeu, mas a mulher foi condenada a três anos de prisão.
O Globo: Desde as eleições presidenciais do Irã ano passado, a senhora vive na Europa porque tem medo de voltar ao seu país. A situação piorou muito desde a reeleição da Mahmoud Ahmadinejad?
Shirin: A situação quanto aos direitos humanos piorou muito. Muitos jornalistas estão na prisão. Alguns advogados que defenderam as pessoas perseguidas pelo regime por terem participado dos protestos depois das eleições foram presos e condenados a muitos anos. Trabalhar em defesa dos direitos humanos é uma atividade perigosa no Irã. Queria contar apenas um caso. Uma colega, Narges Mohammadi, vice-diretora da minha ONG de direitos humanos (Centro de Defesa dos Direitos Humanos), foi uma das perseguidas. Os agentes de segurança chegaram à casa dela de madrugada, algemaram-na e levaram-na presa diante dos olhos dos seus filhos, dois gêmeos de 3 anos, que choraram e tentaram se agarrar à mãe. Narges ficou 20 dias na prisão, mas o efeito desses dias de tortura ela vai arrastar consigo talvez a vida inteira. Ela foi libertada depois dos 20 dias porque estava quase morta, e o regime receava a publicidade negativa do caso porque a nossa ONG é conhecida. Mas precisou pagar uma fiança que correspondia ao valor de todos os seus bens e economias juntos. Ela ficou com graves problemas musculares, nunca mais conseguiu levantar-se da cama. Os médicos sugeriram uma transferência para uma clínica melhor, no exterior, mas o governo a proibia de sair do país. Nos últimos meses, muita gente morreu na prisão depois de torturada. Há ainda muitos trabalhadores nas prisões iranianas.
O Globo: Eles protestaram contra o regime?
Shirin: Sim. Depois das eleições, houve um clima de depressão nacional. Um dos que foram presos foi Mansour Ossanla, o presidente do Sindicato dos Motoristas de Ônibus. Ele sofre de diabetes e está ficando cego. Até a Organização Mundial do Trabalho interveio várias vezes, exigindo a sua libertação. Antes da última visita do presidente Lula ao Irã, dei uma entrevista a uma jornalista brasileira apelando para que Lula, que começou a sua carreira como defensor dos direitos dos trabalhadores, tomasse partido junto ao regime iraniano para a libertação de Ossanla. Mas ele recusou o pedido de visitar a família de Ossanla, o que seria um gesto simbólico e capaz de ter um efeito positivo.
O Globo: Alguns intelectuais iranianos dizem que o regime no Irã não pode ser reformado, apenas abolido, como o comunismo na Europa. A senhora concorda com essa opinião? Se a oposição tivesse vencido ano passado, a situação teria melhorado?
Shirin: Como defensora dos direitos humanos, sempre procuro uma solução que cause as menores perdas e danos no que se refere à população. E o caminho que oferece a perspectiva de menos perdas é o das reformas. Se a oposição tivesse vencido ano passado, nada teria ficado melhor da noite para o dia, mas não teríamos tido esse retrocesso nos direitos humanos que sofremos nos últimos meses.
O Globo: Recentemente, a senhora disse que os americanos deveriam distanciar-se da ideia de qualquer tipo de intervenção militar no Irã. O que os países estrangeiros devem fazer para melhorar a situação no seu país?
Shirin: O que os países podem fazer de melhor é não apoiar o aparelho de repressão no Irã. Eu gostaria de citar o exemplo da firma Eutelsat (da França), que apoia o Irã nas suas medidas de censura. Ou a firma Nokia, que ofereceu a Teerã equipamento para o controle de celulares. Os governos do Ocidente deveriam prestar atenção nisso e tomar medidas para que suas empresas parem de ganhar dinheiro fortalecendo o sistema de repressão no Irã.
Leia no site de “O Globo”.
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Berlim, 15 de agosto de 2010
Repórter: Graça Magalhães-Ruether
Entre elogios e críticas ao Brasil, iraniana Nobel da Paz pede pressão internacional para salvar Sakineh
BERLIM – Prêmio Nobel da Paz em 2003, a advogada iraniana Shirin Ebadi, de 63 anos, acha que o presidente Lula ainda não sabe bem que posição adotar em relação ao Irã. Afinal, lembra ela, de um lado, ele apoia as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas contra Teerã; de outro, toma a iniciativa unilateral de negociar com o país. Ela critica Lula também num episódio ligado ao sindicalista iraniano Mansour Ossanla, que está preso. Como considerava o presidente brasileiro um defensor dos sindicalistas, Shirin pediu que Lula, em sua última viagem ao Irã, visitasse a família de Ossanla, mas o apelo não foi atendido. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Shirin elogiou, porém, a tentativa brasileira de pressionar o Irã no caso de Sakineh Ashtiani, iraniana condenada à morte por apedrejamento. O aumento da pressão internacional poderia influenciar na anulação da pena de morte, opina a advogada, que desde as eleições presidenciais do Irã em 2009 vive na Europa, pois teme ser presa se voltar ao seu país. “A situação dos direitos humanos piorou muito”, afirma, lembrando que a situação da mulher é insuportável desde a revolução islâmica. Embora 65% dos estudantes nas universidades sejam mulheres, as leis do país estabelecem que “a vida de uma mulher vale apenas a metade da de um homem”. O caso de Sakineh traz lembranças amargas para Shirin. Pouco depois da revolução, ela defendeu uma acusada de adultério. E de nada valeram os protestos que organizou contra a execução. A mulher foi morta por apedrejamento.
O Globo: Como a senhora viu a negociação do Brasil com o Irã na questão atômica?
Shirin Ebadi: Para mim, o presidente Lula ainda não sabe direito que posição quer adotar em relação ao Irã. De um lado, diz-se comprometido a seguir as decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. De outro, toma a iniciativa unilateral de ir a Teerã negociar com o Irã.
” Já defendi uma mulher em situação semelhante à de Sakineh Ashtiani, uma mulher que foi condenada à morte por apedrejamento. Ela vivia em Teerã, era muito infeliz no casamento e um dia encontrou um ex-namorado, com quem teve uma relação extraconjulgal “
O Globo: O Brasil ofereceu asilo político a Sakineh Ashtiani, mas o embaixador do Irã em Brasília negou a existência oficial dessa oferta. Na sua opinião, a confusão é um mal-entendido diplomático ou uma jogada política do Irã?
Shirin: Trata-se de algo entre dois estados. Não quero atuar como juíza nesse caso nem comentar. Mas vejo como positiva a tentativa brasileira de interferir a favor da condenada à morte. O mundo inteiro deve tentar intervir para que Sakineh Ashtiani não seja executada. Pela minha experiência, eu diria que, se a pressão internacional aumentar, há a chance de ela sobreviver, de a sentença de morte ser anulada. No passado, o regime iraniano já mudou de posição claramente reagindo à pressão de fora.
O Globo: No seu trabalho em Teerã, já foi advogada de defesa de mulheres condenadas ao apedrejamento?
Shirin: Já defendi uma mulher em situação semelhante à de Sakineh Ashtiani, uma mulher que foi condenada à morte por apedrejamento. Ela vivia em Teerã, era muito infeliz no casamento e um dia encontrou um ex-namorado, com quem teve uma relação extraconjulgal. Infelizmente, toda a campanha de protestos que fizemos contra a sentença não teve resultado, a mulher foi morta por apedrejamento. Foi pouco depois da revolução islâmica, e nessa época a opinião pública internacional não reagia muito aos crimes contra os direitos humanos praticados no Irã. Havia ainda a guerra fria entre o bloco leste e o Ocidente e ninguém prestava muita atenção ao que acontecia no Irã.
O Globo: Quais são, atualmente, os maiores problemas para as mulheres no Irã?
Shirin: O Irã é um país onde 65% dos estudantes nas universidades são mulheres. As mulheres são bem representadas na administração, em diferentes profissões, também nos altos escalões. Há muitas mulheres entre os professores das universidades iranianas, há muitas mulheres que trabalham como advogadas, médicas ou engenheiras. Apesar do alto nível de educação da mulher iraniana, depois da revolução foram introduzidas muitas leis que discriminam as mulheres. A vida de uma mulher vale para a lei apenas a metade do valor que tem a vida de um homem. Isso significa que se um homem e uma mulher são vítimas de uma agressão na rua, e ficam com o mesmo grau de ferimentos, a mulher recebe apenas a metade da indenização que é paga à vítima masculina. Num processo judiciário, o testemunho de um homem tem o valor do testemunho de duas mulheres. De acordo com a lei, um homem tem o direito de ter quatro esposas ao mesmo tempo. As mulheres iranianas fazem tudo o que podem contra essas leis discriminatórias. Há anos lutamos contra essa discriminação ordenada pelo Estado. Muitas das mulheres que participaram dessa luta foram presas, condenadas pela prática de atividades contra a segurança nacional. Num desses processos, onde era advogada de defesa, indaguei com ironia ao promotor: “Então, se uma mulher é contra o seu marido ter outra esposa, os americanos vão atacar o Irã”. O promotor não respondeu, mas a mulher foi condenada a três anos de prisão.
O Globo: Desde as eleições presidenciais do Irã ano passado, a senhora vive na Europa porque tem medo de voltar ao seu país. A situação piorou muito desde a reeleição da Mahmoud Ahmadinejad?
Shirin: A situação quanto aos direitos humanos piorou muito. Muitos jornalistas estão na prisão. Alguns advogados que defenderam as pessoas perseguidas pelo regime por terem participado dos protestos depois das eleições foram presos e condenados a muitos anos. Trabalhar em defesa dos direitos humanos é uma atividade perigosa no Irã. Queria contar apenas um caso. Uma colega, Narges Mohammadi, vice-diretora da minha ONG de direitos humanos (Centro de Defesa dos Direitos Humanos), foi uma das perseguidas. Os agentes de segurança chegaram à casa dela de madrugada, algemaram-na e levaram-na presa diante dos olhos dos seus filhos, dois gêmeos de 3 anos, que choraram e tentaram se agarrar à mãe. Narges ficou 20 dias na prisão, mas o efeito desses dias de tortura ela vai arrastar consigo talvez a vida inteira. Ela foi libertada depois dos 20 dias porque estava quase morta, e o regime receava a publicidade negativa do caso porque a nossa ONG é conhecida. Mas precisou pagar uma fiança que correspondia ao valor de todos os seus bens e economias juntos. Ela ficou com graves problemas musculares, nunca mais conseguiu levantar-se da cama. Os médicos sugeriram uma transferência para uma clínica melhor, no exterior, mas o governo a proibia de sair do país. Nos últimos meses, muita gente morreu na prisão depois de torturada. Há ainda muitos trabalhadores nas prisões iranianas.
O Globo: Eles protestaram contra o regime?
Shirin: Sim. Depois das eleições, houve um clima de depressão nacional. Um dos que foram presos foi Mansour Ossanla, o presidente do Sindicato dos Motoristas de Ônibus. Ele sofre de diabetes e está ficando cego. Até a Organização Mundial do Trabalho interveio várias vezes, exigindo a sua libertação. Antes da última visita do presidente Lula ao Irã, dei uma entrevista a uma jornalista brasileira apelando para que Lula, que começou a sua carreira como defensor dos direitos dos trabalhadores, tomasse partido junto ao regime iraniano para a libertação de Ossanla. Mas ele recusou o pedido de visitar a família de Ossanla, o que seria um gesto simbólico e capaz de ter um efeito positivo.
O Globo: Alguns intelectuais iranianos dizem que o regime no Irã não pode ser reformado, apenas abolido, como o comunismo na Europa. A senhora concorda com essa opinião? Se a oposição tivesse vencido ano passado, a situação teria melhorado?
Shirin: Como defensora dos direitos humanos, sempre procuro uma solução que cause as menores perdas e danos no que se refere à população. E o caminho que oferece a perspectiva de menos perdas é o das reformas. Se a oposição tivesse vencido ano passado, nada teria ficado melhor da noite para o dia, mas não teríamos tido esse retrocesso nos direitos humanos que sofremos nos últimos meses.
O Globo: Recentemente, a senhora disse que os americanos deveriam distanciar-se da ideia de qualquer tipo de intervenção militar no Irã. O que os países estrangeiros devem fazer para melhorar a situação no seu país?
Shirin: O que os países podem fazer de melhor é não apoiar o aparelho de repressão no Irã. Eu gostaria de citar o exemplo da firma Eutelsat (da França), que apoia o Irã nas suas medidas de censura. Ou a firma Nokia, que ofereceu a Teerã equipamento para o controle de celulares. Os governos do Ocidente deveriam prestar atenção nisso e tomar medidas para que suas empresas parem de ganhar dinheiro fortalecendo o sistema de repressão no Irã.
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Repórter: Graça Magalhães-Ruether
Entre elogios e críticas ao Brasil, iraniana Nobel da Paz pede pressão internacional para salvar Sakineh
BERLIM – Prêmio Nobel da Paz em 2003, a advogada iraniana Shirin Ebadi, de 63 anos, acha que o presidente Lula ainda não sabe bem que posição adotar em relação ao Irã. Afinal, lembra ela, de um lado, ele apoia as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas contra Teerã; de outro, toma a iniciativa unilateral de negociar com o país. Ela critica Lula também num episódio ligado ao sindicalista iraniano Mansour Ossanla, que está preso. Como considerava o presidente brasileiro um defensor dos sindicalistas, Shirin pediu que Lula, em sua última viagem ao Irã, visitasse a família de Ossanla, mas o apelo não foi atendido. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Shirin elogiou, porém, a tentativa brasileira de pressionar o Irã no caso de Sakineh Ashtiani, iraniana condenada à morte por apedrejamento. O aumento da pressão internacional poderia influenciar na anulação da pena de morte, opina a advogada, que desde as eleições presidenciais do Irã em 2009 vive na Europa, pois teme ser presa se voltar ao seu país. “A situação dos direitos humanos piorou muito”, afirma, lembrando que a situação da mulher é insuportável desde a revolução islâmica. Embora 65% dos estudantes nas universidades sejam mulheres, as leis do país estabelecem que “a vida de uma mulher vale apenas a metade da de um homem”. O caso de Sakineh traz lembranças amargas para Shirin. Pouco depois da revolução, ela defendeu uma acusada de adultério. E de nada valeram os protestos que organizou contra a execução. A mulher foi morta por apedrejamento.
O Globo: Como a senhora viu a negociação do Brasil com o Irã na questão atômica?
Shirin Ebadi: Para mim, o presidente Lula ainda não sabe direito que posição quer adotar em relação ao Irã. De um lado, diz-se comprometido a seguir as decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. De outro, toma a iniciativa unilateral de ir a Teerã negociar com o Irã.
” Já defendi uma mulher em situação semelhante à de Sakineh Ashtiani, uma mulher que foi condenada à morte por apedrejamento. Ela vivia em Teerã, era muito infeliz no casamento e um dia encontrou um ex-namorado, com quem teve uma relação extraconjulgal “
O Globo: O Brasil ofereceu asilo político a Sakineh Ashtiani, mas o embaixador do Irã em Brasília negou a existência oficial dessa oferta. Na sua opinião, a confusão é um mal-entendido diplomático ou uma jogada política do Irã?
Shirin: Trata-se de algo entre dois estados. Não quero atuar como juíza nesse caso nem comentar. Mas vejo como positiva a tentativa brasileira de interferir a favor da condenada à morte. O mundo inteiro deve tentar intervir para que Sakineh Ashtiani não seja executada. Pela minha experiência, eu diria que, se a pressão internacional aumentar, há a chance de ela sobreviver, de a sentença de morte ser anulada. No passado, o regime iraniano já mudou de posição claramente reagindo à pressão de fora.
O Globo: No seu trabalho em Teerã, já foi advogada de defesa de mulheres condenadas ao apedrejamento?
Shirin: Já defendi uma mulher em situação semelhante à de Sakineh Ashtiani, uma mulher que foi condenada à morte por apedrejamento. Ela vivia em Teerã, era muito infeliz no casamento e um dia encontrou um ex-namorado, com quem teve uma relação extraconjulgal. Infelizmente, toda a campanha de protestos que fizemos contra a sentença não teve resultado, a mulher foi morta por apedrejamento. Foi pouco depois da revolução islâmica, e nessa época a opinião pública internacional não reagia muito aos crimes contra os direitos humanos praticados no Irã. Havia ainda a guerra fria entre o bloco leste e o Ocidente e ninguém prestava muita atenção ao que acontecia no Irã.
O Globo: Quais são, atualmente, os maiores problemas para as mulheres no Irã?
Shirin: O Irã é um país onde 65% dos estudantes nas universidades são mulheres. As mulheres são bem representadas na administração, em diferentes profissões, também nos altos escalões. Há muitas mulheres entre os professores das universidades iranianas, há muitas mulheres que trabalham como advogadas, médicas ou engenheiras. Apesar do alto nível de educação da mulher iraniana, depois da revolução foram introduzidas muitas leis que discriminam as mulheres. A vida de uma mulher vale para a lei apenas a metade do valor que tem a vida de um homem. Isso significa que se um homem e uma mulher são vítimas de uma agressão na rua, e ficam com o mesmo grau de ferimentos, a mulher recebe apenas a metade da indenização que é paga à vítima masculina. Num processo judiciário, o testemunho de um homem tem o valor do testemunho de duas mulheres. De acordo com a lei, um homem tem o direito de ter quatro esposas ao mesmo tempo. As mulheres iranianas fazem tudo o que podem contra essas leis discriminatórias. Há anos lutamos contra essa discriminação ordenada pelo Estado. Muitas das mulheres que participaram dessa luta foram presas, condenadas pela prática de atividades contra a segurança nacional. Num desses processos, onde era advogada de defesa, indaguei com ironia ao promotor: “Então, se uma mulher é contra o seu marido ter outra esposa, os americanos vão atacar o Irã”. O promotor não respondeu, mas a mulher foi condenada a três anos de prisão.
O Globo: Desde as eleições presidenciais do Irã ano passado, a senhora vive na Europa porque tem medo de voltar ao seu país. A situação piorou muito desde a reeleição da Mahmoud Ahmadinejad?
Shirin: A situação quanto aos direitos humanos piorou muito. Muitos jornalistas estão na prisão. Alguns advogados que defenderam as pessoas perseguidas pelo regime por terem participado dos protestos depois das eleições foram presos e condenados a muitos anos. Trabalhar em defesa dos direitos humanos é uma atividade perigosa no Irã. Queria contar apenas um caso. Uma colega, Narges Mohammadi, vice-diretora da minha ONG de direitos humanos (Centro de Defesa dos Direitos Humanos), foi uma das perseguidas. Os agentes de segurança chegaram à casa dela de madrugada, algemaram-na e levaram-na presa diante dos olhos dos seus filhos, dois gêmeos de 3 anos, que choraram e tentaram se agarrar à mãe. Narges ficou 20 dias na prisão, mas o efeito desses dias de tortura ela vai arrastar consigo talvez a vida inteira. Ela foi libertada depois dos 20 dias porque estava quase morta, e o regime receava a publicidade negativa do caso porque a nossa ONG é conhecida. Mas precisou pagar uma fiança que correspondia ao valor de todos os seus bens e economias juntos. Ela ficou com graves problemas musculares, nunca mais conseguiu levantar-se da cama. Os médicos sugeriram uma transferência para uma clínica melhor, no exterior, mas o governo a proibia de sair do país. Nos últimos meses, muita gente morreu na prisão depois de torturada. Há ainda muitos trabalhadores nas prisões iranianas.
O Globo: Eles protestaram contra o regime?
Shirin: Sim. Depois das eleições, houve um clima de depressão nacional. Um dos que foram presos foi Mansour Ossanla, o presidente do Sindicato dos Motoristas de Ônibus. Ele sofre de diabetes e está ficando cego. Até a Organização Mundial do Trabalho interveio várias vezes, exigindo a sua libertação. Antes da última visita do presidente Lula ao Irã, dei uma entrevista a uma jornalista brasileira apelando para que Lula, que começou a sua carreira como defensor dos direitos dos trabalhadores, tomasse partido junto ao regime iraniano para a libertação de Ossanla. Mas ele recusou o pedido de visitar a família de Ossanla, o que seria um gesto simbólico e capaz de ter um efeito positivo.
O Globo: Alguns intelectuais iranianos dizem que o regime no Irã não pode ser reformado, apenas abolido, como o comunismo na Europa. A senhora concorda com essa opinião? Se a oposição tivesse vencido ano passado, a situação teria melhorado?
Shirin: Como defensora dos direitos humanos, sempre procuro uma solução que cause as menores perdas e danos no que se refere à população. E o caminho que oferece a perspectiva de menos perdas é o das reformas. Se a oposição tivesse vencido ano passado, nada teria ficado melhor da noite para o dia, mas não teríamos tido esse retrocesso nos direitos humanos que sofremos nos últimos meses.
O Globo: Recentemente, a senhora disse que os americanos deveriam distanciar-se da ideia de qualquer tipo de intervenção militar no Irã. O que os países estrangeiros devem fazer para melhorar a situação no seu país?
Shirin: O que os países podem fazer de melhor é não apoiar o aparelho de repressão no Irã. Eu gostaria de citar o exemplo da firma Eutelsat (da França), que apoia o Irã nas suas medidas de censura. Ou a firma Nokia, que ofereceu a Teerã equipamento para o controle de celulares. Os governos do Ocidente deveriam prestar atenção nisso e tomar medidas para que suas empresas parem de ganhar dinheiro fortalecendo o sistema de repressão no Irã.
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