É conhecida a frase, “decisão judicial não se discute, cumprese”.
Mas, o que fazer quando a Justiça — especialmente a Suprema Corte — não decide? Quando não se sabe o que cumprir? É exatamente esta a situação das eleições brasileiras em 2010. Faltando menos de duas semanas para o segundo turno, a dúvida crucial permanece.
Afinal, a Lei da Ficha Limpa vale ou não para estas eleições? A resposta, que só o Supremo Tribunal Federal (STF) pode oferecer, está sendo aguardada ansiosamente.
Em conjunto, os enrolados com a Ficha Limpa obtiveram cerca de nove milhões de votos, aproximadamente 10% do total computado no dia 3 de outubro. A princípio, esses votos são nulos. Entretanto, se a Ficha Limpa não valer para este pleito, esses votos serão validados, alterando os resultados eleitorais em diversas unidades da federação.
Em três estados (Amapá, Pará e Paraíba) a escolha dos senadores foi parar no tapetão. No Amapá e na Paraíba, entre os mais votados estão João Capiberibe (PSB) e Cássio Cunha Lima (PSDB), que concorreram apesar dos registros indeferidos.
No Pará, o rolo é maior. Jader Barbalho (PMDB) foi o segundo mais votado, mas tal como o terceiro colocado, Paulo Rocha (PT), é considerado ficha suja. Assim, o beneficiado seria o quarto mais votado, Marinor Brito, do PSOL.
No Rio de Janeiro, a confusão é semelhante.
O deputado Garotinho (PR), que obteve 694.862 votos, disputou as eleições graças a uma liminar que impediu o indeferimento da sua candidatura. Desta forma, se a Ficha Limpa valer em 2010, os votos recebidos serão anulados. Os vários deputados que vieram a reboque dessa votação expressiva cairão fora, alterando a bancada do estado.
Em São Paulo o caso é inverso. Se a Ficha Limpa não valer este ano, Paulo Maluf (PP), que disputou a eleição com registro indeferido, estará eleito e arrastará para o Congresso outros parlamentares, modificando o cálculo dos deputados paulistas.
Diante desse caos, a quem apelar? Ao bispo? Na realidade, até a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) já se manifestou a favor da validade da lei, sem que o fato tenha sensibilizado metade dos ministros do STF. Com a indefinição, mesmo após o segundo turno não se saberá quais foram, de fato e de direito, os eleitos. Mal comparando, é como se em um jogo de futebol o tempo regulamentar terminasse sem que o juiz tivesse decidido se houve ou não um pênalti no primeiro tempo.
Para agravar, há outros casos que precisam ser julgados e nada têm a ver com a Lei da Ficha Limpa. O principal exemplo é a eleição do Tiririca (PR), que se for analfabeto sequer poderia ter se candidatado. A sua votação de 1,3 milhão de votos elegeu outros três deputados, que ficam na berlinda até que o palhaço prove que sabe ler e escrever.
No que diz respeito ao STF, os ministros divergem entre duas correntes interpretativas do Direito.
Para alguns, jus positivistas kelsianos, a letra da lei é tudo, acima inclusive da suposta Justiça. Desconsideram que o texto legal pode ter sido escrito com a deliberada intenção de subverter o que é justo, tal como aconteceu com as leis alemãs criadas à época de Hitler. Tempos depois, a história mostrou que o legal foi injusto e positivou, naquela ocasião, o absurdo.
No limite do tempo, a Corte Maior terá que acordar entre a letra e o espírito da lei. Nada parece mais relevante atualmente sob os pontos de vista eleitoral e judicial.
Como o STF está com apenas dez ministros — o presidente Lula ainda não indicou o substituto do ministro Eros Grau, que se aposentou em agosto — os dez membros do colegiado precisam resolver, com urgência, se valem ou não os milhões de votos em discussão. O clássico 5 a 5 terá que ser decidido na prorrogação. Nem que seja no cara ou coroa.
No caso das eleições dos papas, os cardeais ficam trancados cum clave (com chaves) até elegerem o novo sumo pontífice. Após a eleição, os votos são queimados em um forno especial da Capela Sistina, deixando escapar pela chaminé a fumaça branca, vista na Praça de São Pedro, como o anúncio definitivo da escolha do Santo Padre.
Para que as eleições deste ano sejam definitivamente concluídas, os brasileiros esperam — sobretudo os quase 2 milhões que assinaram o projeto de iniciativa popular transformado em lei — que o Supremo Tribunal Federal cumpra o seu papel, tornando visível em todo o país a fumaça do bom direito.
Fonte: Jornal “O Globo” – 19/10/10
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