A nossa preferência pelo burocratismo é visceral. A permanente preocupação com o controle, que é também uma manifestação dissimulada de autoritarismo, leva à constituição de uma parafernália de instrumentos sobrepostos, que se traduzem em custos irrecuperáveis e morosidade.
O governo federal editou, em 17 de julho passado, o Decreto n.º 9.094, que pretende simplificar o atendimento aos usuários de serviços públicos. Esse decreto repete regras que não tiveram sucesso, como a inexigibilidade de reconhecimento de firmas.
Reúne uma coleção robusta de truísmos, apresentados como diretrizes para as instituições públicas: racionalização de métodos e procedimentos de controle, utilização de linguagem clara, atuação integrada e sistêmica, presunção de boa-fé, etc. Reproduz proposta, apresentada no âmbito da Comissão dos Juristas para a Desburocratização do Senado Federal, que veda a solicitação de informações a usuários dos serviços públicos, quando elas já constarem de bancos de dados de instituição pública. Enfraquece, entretanto, essa vedação, ao estabelecer que ela não prevalecerá quando houver “disposição legal em contrário”. De resto, as sanções pelo descumprimento das normas são demasiado genéricas e, portanto, inaplicáveis.
Em suma, o longo e barroco decreto apenas evidencia que ainda não começamos verdadeiramente a luta para superação do burocratismo, que deveria ser deduzida do princípio da eficiência na administração pública, preconizado no art. 37 da Constituição.
Não é possível que, a qualquer tempo, por obscura motivação, a burocracia estabeleça exigências estapafúrdias para o cidadão.
Quem não se lembra do kit de primeiros socorros nos automóveis? E da ridícula tomada de três pinos, cuja “teoria” bem poderia concorrer ao prêmio IgNobel de excentricidade?
Algumas pérolas do burocratismo são, contudo, revestidas de aparente sacralidade. A exigência de certidões negativas é a mais conhecida delas.
Certidão é relato do passado. Certidões fiscais têm, todavia, validade por seis meses. Assim, sem que haja nenhuma manifestação de perplexidade, conseguimos produzir a certidão do futuro.
A exigência de certidão negativa para participar de licitações ou contratar com a administração pública tem um presumível propósito de obrigar o devedor a liquidar seu débito fiscal. É claro, desde logo, que se trata de instrumento que pretende suprir a deficiência da cobrança direta, convertendo-se em sanção política, como entende o Supremo Tribunal Federal.
Em outra perspectiva, a exigência finda por restringir a atividade econômica do devedor, inclusive a capacidade para pagar a própria dívida fiscal.
Não seria mais razoável facultar a participação do devedor em procedimentos licitatórios da administração pública e, se vencedor, proceder-se à amortização da dívida, quando da realização dos pagamentos? A via proposta, no plano da eficácia, é análoga à dação em pagamento e à penhora do faturamento na execução fiscal.
A demanda por certidões negativas perturba o atendimento nas repartições fiscais, gera uma montanha de mandados de segurança e inferniza os escritórios de contabilidade, sem que se tenha, até hoje, nem sequer uma avaliação de sua eficácia como instrumento impróprio de cobrança indireta.
De igual forma, é incompreensível a resistência à inclusão dos débitos previdenciários na regra geral de compensação dos tributos federais. Obviamente, esse procedimento corresponde tão somente a uma restituição e pagamento em tempo real, sendo, por conseguinte, neutro do ponto de vista de apropriação contábil dos créditos e débitos tributários.
Não se justifica a opção por lentos e burocráticos processos de restituição e cobrança, salvo se admitidas bisonhas pretensões confiscatórias ofensivas à moralidade da administração pública.
O Brasil precisa de uma lei geral da desburocratização, despida de preciosismos, cuidando de questões relevantes e impondo sanções efetivas no caso de inobservância. O governo de transição poderia conferir prioridade a essa lei.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 03/08/2017.
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