A timidez é um imenso sofrimento. Vem de dentro. É incontrolável. Sentimo-nos horríveis e tememos a rejeição e, por isso, não conseguimos enfrentar quase nenhuma situação social. Nossos fantasmas não são simpáticos como o Gasparzinho, são horrendos. O contato é tão penoso que melhor evitá-lo. Tudo menos a rejeição.
Frequentemente, tímidos são brilhantes, inteligentes, atraentes. Mas os espelhos mentais em que nos miramos são como os espelhos deformadores, só que não estamos no parque de diversões. Achamos que é assim que os outros nos veem e ficamos pelos cantos. Vontade não falta, falta coragem.
Temos o impulso dos Tímidos da música de Jacques Brel, compositor belga: “E num dia de audácia/ Diante do seu gelo/ Sonham com o espaço/ Vestem uma couraça/ Ocupam sua posição/ Vamos a Paris/ E viva a Gare/ Saint-Lazare/ Mas despistam/ Se petrificam/ Se perdem/ Se espatifam/ Uma valise em cada mão.”
Queremos Paris e a Gare Saint-Lazare, mas não conseguimos.
E pior, com a timidez vem a síndrome do impostor. Quando rompemos a couraça da timidez e dá certo, vem o sentimento avassalador da impostura. O sucesso não foi porque somos bons, interessantes, bonitos ou capazes. Foi porque somos competentes enganadores. Conseguimos iludir aquela pessoa, aquele grupo, aquela plateia. Eles caíram no nosso conto do vigário. Em vez de orgulho, temos vergonha das nossas raras vitórias. Sentimo-nos patifes.
Mas há uma saída para conseguir contornar a síndrome do impostor, que sempre nos xinga de vigaristas. O primeiro passo é torcer a resposta que recebemos dela e ver que nossos sucessos e triunfos podem atordoar a crença maldita em nossa própria impostura. De tanto repetir, conseguimos dar a volta por cima: como posso ser um impostor se sou sempre tão bem-sucedido? Essa é a hora de vestir a couraça e ir em frente sem despistar, sem ficar petrificado, sem se perder e sem se espatifar.
A primeira vez é difícil. Houve muitas que apagamos da memória para esquecer o sofrimento. Quantas moças não tivemos coragem de convidar para dançar? Quantas vezes fugimos das apresentações nas salas de aula? Quantas vezes faltou coragem para defender nosso interesse, mesmo quando tínhamos razão?
Só há uma solução: enfrentar a situação da maneira mais audaciosa possível. Se não conseguimos convidar para dançar a moça que está ali do lado, e quisermos resolver a situação mesmo, de verdade, a solução é escolher a moça que está do outro lado do salão. E atravessá-lo, enorme, vazio, na frente de todos nos olhando, cegos pela obsessão de derrotar a maldita timidez. Ao fazermos isso, criamos uma situação tão difícil, tão avassaladora e esmagadora que, se a moça do outro lado não quiser dançar conosco, esse será um fracasso ínfimo, comparado com aquela caminhada longa, solitária e oprimida pelo meio do salão vazio. A recusa da moça será irrelevante. A primeira, a travessia do salão, é a mais difícil. No fundo, não importa se a moça dançou conosco ou não. Melhor que tenha dançado, apesar de nos sentirmos, durante a dança, vermelhos como tomates maduros.
A palestra era em Roma. O terror era enorme, mas a tentação de conhecer Roma com passagem paga enterrou o medo. Tinha dois dias na cidade antes da palestra, que estava prontíssima. Mas passei-os inteiros no restaurante do hotel, fechado durante o dia, revisando, repassando, ensaiando mentalmente. A tentação de fugir era enorme, mas eu já tinha atravessado o Atlântico e feito a viagem. Impossível não convidar a moça para dançar.
A palestra era num pódio. Quando me disseram que começasse, subi e agarrei-o porque tinha certeza que se não o agarrasse ele pularia em cima de mim e me derrubaria. E a farsa viria à tona.
Eram 100 ou 150 pessoas no auditório. Eu, agarrado ao pódio, não via ninguém. Comecei a falar (em inglês). Não conseguia ouvir minhas próprias palavras, mas não devia ser nada errado. Defendia-me falando rapidíssimo. De repente, acima das minhas notas, começou a piscar insistentemente um letreiro vermelho: “Speak slowly”. Senti-me totalmente perdido. A velocidade era a minha defesa, mas o maldito letreiro não parava de piscar. Eu já estava do outro lado do salão.
Parei de falar, respirei fundo. Devo ter parado uns cinco a dez segundos. Agora só restava convidar a moça, a travessia do salão havia terminado. O letreiro parou de piscar, as intérpretes simultâneas que traduziam minha fala para francês, espanhol, alemão e italiano já conseguiam acompanhar. Não me lembro do auditório, mas eu tinha atravessado o salão, a dança era consequência: “Allons Paris/ Et vive La Gare/ Saint-Lazare.” Terminou. Houve aplausos, almoço com os anfitriões. Tudo terminado e eu não parti com uma valise em cada mão. Contratei um carregador.
Seis meses depois fui convidado para outra palestra para o mesmo grupo. Agora a dança era mais fácil porque eu não precisava temer nada. O pior já tinha feito. Encapsulei anos de batalha num baile e numa palestra, mas as ocasiões foram inúmeras, os fracassos de não enfrentar foram enormes. A maneira que encontrei de vencer a timidez foi transformar o que antecedia a dança que eu não tinha coragem de enfrentar numa coisa irrelevante ante o desafio de atravessar o salão.
Hoje, quando a timidez me ataca (e acredite, leitor, ela volta, sempre), escolho a moça que está mais longe e atravesso o salão. Ou entro na palestra para o que der e vier. Depois que ela começa, parar, respirar fundo e continuar vira tarefa fácil.
Lytha disse-me que ficava impressionada com a minha capacidade de atravessar o salão, Hans convidou-me para fazer as palestras em Roma e Regina ajudou-me a entender tudo isso.
Fonte: Jornal “O Estadao de S.Paulo” – 24/03/10
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