A rejeição da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer e a suspensão do afastamento do senador Aécio Neves trouxeram de volta um sentimento conhecido do brasileiro: aquela velha sensação de que o combate à corrupção é inútil, pois sempre haverá um atalho legal, um drible jurídico ou uma manobra política capaz de salvar a pele dos mesmos suspeitos de sempre. O inconfundível cheiro de pizza tem se imposto ao sopro de esperança trazido nos últimos anos pela Operação Lava Jato. Decisões recentes do Tribunal Superior Eleitoral, do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos plenários da Câmara e do Senado sugerem que ela caminha a passos céleres ao mesmo destino da Operação Mãos Limpas, na Itália. Por lá, medidas legislativas reduziram os poderes da Justiça, fizeram crimes prescrever, tiraram condenados da cadeia e criaram uma sensação de impunidade ainda maior que a anterior às investigações. “A corrupção ficou mais despudorada. Antes, pelo menos os corruptos tinham vergonha”, afirmou o ex-procurador Gherardo Colombo, num evento que reuniu em São Paulo estrelas da Lava Jato e da Mãos Limpas na semana passada.
Os cabelos brancos e o desalento sereno de Colombo contrastavam com o entusiasmo juvenil do procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Com a verve de um pregador no púlpito ou, diriam alguns, de um político no palanque, Dallagnol reconheceu os limites do Judiciário no combate à corrupção. “É preciso ir além da Lava Jato. Não há solução fora do sistema político”, disse. Ele propôs uma espécie de selo de qualidade a candidatos que se comprometerem com uma agenda anticorrupção em 2018, similar às Dez Medidas do Ministério Público (MP) que naufragaram no Congresso há um ano. Em “A luta contra a corrupção”, Dallagnol expõe seu caso. Compara o mal, cujo prejuízo ao Brasil estima em R$ 200 bilhões anuais, a um “serial killer que mata em silêncio”. “Ela se disfarça de buracos em estradas, falta de medicamentos, crimes de rua, miséria”, escreve. “Mas, como se esconde, dificilmente é responsabilizada pelas mortes que causa.” A principal razão a que atribui a persistência da chaga é a impunidade, resultado de um sistema jurídico com inúmeras brechas favoráveis aos criminosos. Boa parte das Dez Medidas se voltava a fechar tais brechas.
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Advogados e juízes costumam criticar a sanha justiceira do MP. Posam de defensores do estado de direito contra o abuso das prisões preventivas, os ataques à privacidade e o arbítrio das autoridades. A realidade, esmiuçada em detalhes objetivos por Dallagnol, desmente todo esse teatro. De acordo com ele, só 3,4% dos detidos na Lava Jato eram mantidos no cárcere preventivamente, sem condenação judicial. Mais de 95% das decisões da primeira instância eram referendadas por instâncias superiores. Em contrapartida, a probabilidade de alguém ser punido por corrupção no Brasil é baixíssima – estimada em 3,17%. Em casos rumorosos do passado, apenas 1,1% dos réus foi condenado em definitivo. E mesmo esses acabam não indo para a cadeia. No célebre episódio dos Anões do Orçamento, foi preso apenas o delator do esquema, um assessor parlamentar. Entre os protegidos pelo foro privilegiado, casos se acumulam sem julgamento em cortes superiores por até 20 anos, enquanto corre o prazo de prescrição dos crimes. Apenas em junho de 2013, o STF expediu o primeiro mandado de prisão contra um parlamentar na história: o ex-deputado Natan Donadon, condenado por desvio de dinheiro público. Mesmo no caso do mensalão, veloz para os padrões do STF, o julgamento levou oito anos.
Nenhum advogado de político deixa de aproveitar as inúmeras filigranas jurídicas que permitem anular provas – como ocorreu na Operação Castelo de Areia. Nem de recorrer enquanto der, se possível até a prescrição – como ocorreu no escândalo Marka-Fonte Cindam ou com o deputado Paulo Maluf. O ex-senador Luiz Estevão fez 120 recursos até ser preso. Dallagnol cita dois exemplos reais de recursos que ilustram a benevolência com os réus no convoluto labirinto jurídico brasileiro. Tome fôlego para ler: “O agravo regimental nos embargos de declaração no agravo regimental no agravo em recurso extraordinário no recurso extraordinário no agravo regimental nos embargos de declaração no agravo regimental no agravo nº 1249838”; e “os embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental nos embargos de declaração no agravo em recurso extraordinário no recurso extraordinário no agravo regimental no agravo regimental no agravo no 1387499”. Ao lado dos italianos, o juiz Sergio Moro lembrou uma frase de Joaquim Nabuco na longa campanha do abolicionismo, que comparou ao combate à corrupção: “Há necessidade de manter infinita esperança”. Até hoje, infinita tem sido apenas nossa paciência – e a tolerância com a impunidade.
Fonte: “Época”, 29/10/2017.
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