Manuais escolares sem suporte em bibliografia seriam veículos ideais para a demanda de revisionismo histórico. Por essa via, seria mais fácil presentear o cliente (no caso, o governo) com a “verdade” que ele deseja.
Nunca, em toda a trajetória da imprensa, um jornal publicou tantas mentiras quanto o Pravda, órgão do Partido Comunista da URSS. A palavra russa significa “verdade” —e não uma mera verdade factual, mas a verdade dos justos e retos. O totalitarismo estabiliza a verdade do poder como narrativa única, intocável.
Nas sociedades abertas, porém, a verdade histórica está sujeita à disputa política e nem sempre se obtém um consenso básico sobre eventos traumáticos do passado.
A França carece de museus relevantes sobre o regime de Vichy, que colaborou com os nazistas, pois parcela significativa de suas elites aderiu ao colaboracionismo.
A Espanha não conseguiu acertar as contas com a Guerra Civil porque, na transição à democracia, conservadores e comunistas uniram-se num pacto tácito de esquecimento. Os primeiros tentavam apagar suas origens franquistas, enquanto os segundos queriam ocultar seus próprios crimes contra anarquistas e trotskistas.
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Na Hungria, meses atrás, o governo nacional-populista de Viktor Orbán removeu dos arredores do Parlamento a estátua de Imre Nagy, o líder comunista que se insurgiu contra a URSS na revolução democrática de 1956 e foi executado em 1958.
O gesto serve para eliminar os lugares da memória ligados à era comunista, restaurando cenários de uma Budapeste anterior à Segunda Guerra Mundial, e também como agrado a Vladimir Putin, aliado de Orbán, que almeja sanitizar a história da “Grande Rússia”.
Há, por outro lado, sociedades que aprenderam a lidar com os fantasmas do passado. A Alemanha expõe sem disfarces o horror do nazismo no museu público Topographie des Terrors. No Chile e na Argentina, a investigação judicial dos crimes contra a humanidade cometidos pelas ditaduras implantadas na década de 1970 gerou uma narrativa histórica quase universalmente compartilhada.
O Brasil não teve a mesma sorte: o pacto da transição, organizado em torno da Lei de Anistia (1979), turva até hoje a imagem da ditadura militar.
Na barganha da Lei de Anistia, impediu-se o escrutínio judicial dos crimes da ditadura. Na outra ponta, concedeu-se à esquerda o privilégio de elevar os líderes da luta armada ao estatuto oficioso de heróis nacionais. A impunidade foi paga com a moeda da mentira estatal.
Assim, os chefes militares e os torturadores não foram alcançados pelo braço da lei e, em troca, a Comissão de Anistia prestou homenagens a figuras como Marighella e Lamarca. A demanda bolsonarista de reabilitação escolar da ditadura é um fruto tardio do intercâmbio fraudulento que propiciou a transição.
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O general Aléssio quer que os professores instaurem uma novilíngua orwelliana. No lugar da ditadura que cassou as liberdades públicas e os direitos políticos, surgiria uma “guerra” entre “dois lados”: militares patriotas e terroristas comunistas. E, no lugar de assassinatos sob tortura, emergiriam centenas de “mortes em confronto”.
O revisionismo bolsonarista pretende ir muito além do constrangido esquecimento francês ou espanhol. Sua meta é celebrar a ditadura, tal como a Comissão de Anistia celebrou os ícones da luta armada.
No projeto bolsonarista, as reformas econômicas não passam de detalhes. O governo almeja reescrever a história do Brasil para reformar as mentes.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 12/01/2019