O registro em cartório de cerca de 2200 paginas contendo todas as obras, realizações e triunfos atribuídos por Lula a si mesmo é uma inutilidade, mas fecha a perfeição um governo em que as versões valeram mais que os fatos.
Pouco antes de completar o último dia de mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mandou imprimir de uma vez só seis livros de formato extragrande, com cerca de 2200 páginas no total, para deixar anotadas todas as obras, realizações e triunfos que, segundo ele próprio. seu governo deixará para o Brasil. Mandou até registrar em cartório o que está escrito ali, fiel à antiga tradição dos políticos brasileiros de colar estampilha e reconhecer firma em declarações ou promessas que fazem, na esperança de que um carimbo no tabelionato de notas possa lhes dar uma cara mais verdadeira aos olhos do público em geral. E mais perda de tempo do que qualquer outra coisa. Quem é que vai ter coragem de ler uma montoeira de papel desse tamanho? O próprio Lula, com certeza, não vai algo que combina muito bem, aliás, com a despedida de um governo que representou com perfeição a vitória da aparência sobre a realidade. De nada serve, além disso, encarar esse tratado em seis volumes para ser informado, por exemplo, de que Lula fez o “trem-bala” e outras maravilhas; nem o trem-bala nem as maravilhas passam a existir só porque os livros dizem que existem. Mais que tudo, a obra 6 inútil porque não mostra o que houve de melhor, realmente, no governo que agora se encerra. E o melhor do governo Lula foi o que ele não fez. O lado positivo de seus oito anos na Presidência começa e termina aí -no mal que poderia ter feito e acabou não fazendo. Não 6 mais que isso. Também não 6 menos.
Naturalmente, um governo como o de Lula, que acaba com mais de 80% de aprovação popular segundo os institutos de pesquisa, leva a um julgamento quase automático: só pode ter sido muito bom, com números desse porte. Como seria possível haver qualquer opinião diferente? De fato, 80% da população brasileira, ou até mais, 6 uma multidão. Ao mesmo tempo, 6 igualmente verdadeiro que não existe nada de bom, em si, numa multidão o fato de juntar muitos, ou quase todos, não a torna mais virtuosa nem quer dizer que esteja certa. Maiorias servem para escolher quem vai governar; não 6 sua função definir o que 6 bom e o que 6 ruim, nem tornar obrigatório que se concorde com elas. A população brasileira, em massa, acha que Lula fez um grande governo? Tudo bem, e melhor para ele. Talvez seja essa mesmo, por sinal, a maneira mais prática ou eficaz de julgar um presidente e sua obra. Nada disso, por6m, tem força para mudar os fatos. Os fatos são o que são, não aquilo que parecem ou aquilo que se acha deles; o que aconteceu 6 aquilo que foi possível observar, não aquilo que se conta ou se imagina. No caso de Lula, 6 um fato da vida real que seu governo não fez muitas coisas que poderia ter feito, ou se esperava que fizesse, ou foi pressionado a fazer. E nisso, ao final das contas, que está o seu principal mérito.
Lula, para começar, não desmanchou a política econômica do seu antecessor do combate à inflação aos aumentos reais do salário mínimo, da formação de superávit nas contas públicas à estratégia de juros, foi mais fiel ao roteiro que recebeu de Fernando Henrique do que seria, talvez, um sucessor vindo do mesmo partido do ex-presidente. Não demitiu o presidente que nomeou para o Banco Central, Henrique Meirelles, embora o PT e suas vizinhanças tivessem feito todo tipo de pressão para conseguir isso, nem cedeu à tentação de fazer demagogia com a taxa de juro. Não fez o “programa econômico da esquerda”, como exigiam à sua volta. Não experimentou nenhum dos truques de circo que, até o Plano Real, marcaram a condução da economia brasileira durante anos a fio. Não fez a “reforma agrária” fez exatamente o contrário, o que foi decisivo para o Brasil mais do que dobrar a produtividade rural entre 1988 e 2008. Não estatizou nada do que fora privatizado nos governos anteriores, embora falasse o tempo todo contra as privatizações. Não sustentou para valer no Congresso nenhuma proposta para reduzir a liberdade de imprensa embora, também aí, tenha passado quase todo o seu mandato dizendo que o Brasil precisava colocar os meios de comunicação “sob o controle da sociedade”, ou das “organizações sociais”
Lula não tocou no direito de propriedade, na liberdade de iniciativa nem no respeito ao cumprimento de contratos, apesar de toda a sua discurseira contra “os ricos” e “as elites”. Não hostilizou o capital estrangeiro, que bateu recordes de investimento no Brasil durante o seu governo, apesar de todas as pragas que rogou contra o “imperialismo” e as “grandes potências”. Não socializou nada; foi de esquerda no microfone e neoliberal com a caneta de presidente na mão, ou, como observou o ex-ministro Delfim Netto, deveria ser festejado como um dos heróis do capitalismo brasileiro. Não mexeu nas normas e nos programas montados no governo anterior para fortalecer o sistema bancário, o que muito ajudou o Brasil a superar as crises financeiras internacionais dos últimos anos. Não transformou o Brasil numa Cuba ou Venezuela, países que tanto diz admirar; talvez não conseguisse, mas o fato 6 que não tentou. Não levou adiante a aventura de tentar um terceiro mandato, e vai sair do Palácio do Planalto no dia marcado. Não fez, em suma, o governo que o seu partido queria, ou dizia querer a ponto de o grão-cacique José Dirceu afirmar que só agora, quando ele sair e Dilma Rousseff entrar, o PT vai chegar de fato ao poder. E talvez o maior de todos os elogios que Lula poderia receber.
Isso é o que se vê de bom, e isso 6 o que se tem. No mais, os oito anos de governo Lula são quase sempre uma caminhada por um mundo escuro. Não há, no conhecimento público, um único ato de generosidade em sua conduta durante esse tempo todo. Comportou-se desde o começo, e cada vez mais, com uma combinação de soberba, arrogância e mania de grandeza que provavelmente não encontra paralelo em nenhum outro presidente brasileiro. Passou o governo inteiro dizendo que ninguém, em 500 anos, fez mais pelo Brasil do que ele. Atribuiu a si obras imaginárias, ou realizações que vêm sendo construídas há anos. Disse, mais de uma vez, que os outros países do mundo, sobretudo os desenvolvidos, deveriam aprender com ele como se deve governar; em diversas oportunidades, comparou-se a Deus. Foi uma marca sombria de sua passagem pela Presidência, ao mesmo tempo, o rancor declarado aos adversários, gente que, em seu modo de ver a vida política, deveria ser “exterminada”, e em relação à qual queria “vingança”. Nunca deixou de mostrar um grau muito baixo de tolerância com qualquer opinião diferente das suas; num de seus momentos de maior excitação, acusou um repórter que lhe havia desagradado de “doente mental” e recomendou que ele se submetesse a “tratamento psiquiátrico”. A mensagem, aí, parece ser bem clara: “Quem discorda de mim só pode ser louco”
Lula, pelo demonstrado em sua conduta, fez questão de aproveitar ao máximo as oportunidades que teve para utilizar mal a popularidade serviu-se dela, dia após dia, como uma autorização para dizer e fazer qualquer coisa que lhe passasse pela cabeça, como na ocasião em que se colocou contra os presos poIíticos cubanos que faziam greve de fome e a favor dos seus carcereiros ou quando disse que era preciso respeitar a legislação do Irã, que condenou à morte por apedrejamento uma mulher acusada de adultério. Lula também promoveu, como ninguém fez antes dele no Brasil, um culto sistemático à ignorância. Podia, mas não quis, ter curado a sua, através do esforço para aprender: preferiu o caminho mais comodo de transformar a ignorância em virtude e o conhecimento em defeito. Do primeiro ao último dia de governo, insistiu em dizer que não precisou de mais que o 4° ano primário para chegar à Presidência da República, enquanto tanta gente que estudou não conseguiu nada. Mais: sempre deixou transparecer o seu desprezo por quem sabe mais do que ele, e a sua hostilidade a quem estudou; na sua opinião. é tudo gente suspeita de ser “antipovo”. Não parou de dizer que foi preciso “um operário”, ou “um menino sem estudo” do Nordeste, para fazer “a transposição das águas” do Rio São Francisco ou armar a maior “negociação de paz” jamais conseguida até agora no Oriente Médio. para encontrar petróleo no pré-sal ou construir “mais universidades” que qualquer outro presidente brasileiro.
Um jogador que está com boas cartas na mão, dizia Oscar Wilde, deveria ter a obrigação de jogar limpo. Não foi o que Lula fez. Como presidente da República, recebeu uma maravilha de jogo ajuda do Congresso, apoio popular, situação favorável na economia mundial, uma oposição que nunca chegou a incomodar de verdade. Mas Lula não se contentou com os favores que recebeu da sorte. Desde o início, preferiu embaralhar os fatos para criar uma realidade da qual só tirou proveiro. O problema é que a realidade criada por ele é uma falsificação maciça dos acontecimento e nada deixa isso mais claro do que a sua decisão de transformar o mensalão, um dos casos de corrupção mais comprovados e grosseiros da história política do Brasil. numa “tentativa de golpe” na qual se coloca, ao mesmo tempo, nos papéis de vítima e de herói o campeão da causa popular que “eles” não conseguiram derrubar. Ao vencedor, as batatas, claro, e Lula recebeu um batatal inteiro. Mas nem ele nem seu governo podem dar existência ao que não existiu nem podem levar, na hora da partida, mais crédito do que merecem.
Publicado na revista “VEJA”
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