O conceito de repressão financeira foi originalmente desenvolvido por John Gurley e E. Shaw nos anos 1960, mas foi nos anos 1980, a partir do trabalho de Ronald Mckinnon, que esse se popularizou, tornando-se um tema obrigatório nos cursos de economia do desenvolvimento. Ocorre repressão financeira quando o governo limita o livre fluxo financeiro para reduzir a remuneração obtida pelos poupadores e favorecer certos tomadores de recursos, em especial o próprio setor público.
Vários instrumentos podem ser usados com esse fim, como tetos para as taxas de juros, incentivos tributários ou regulatórios para investimentos em certas aplicações, crédito direcionado etc. Podem ser aí incluídas várias medidas que também servem ao papel de regulação prudencial, como depósitos compulsórios elevados; limites a investimentos em certos ativos por investidores institucionais, como fundos de pensão; e benefícios tributários nas aplicações em papéis públicos.
Para que essas formas indiretas de tributação dos poupadores sejam factíveis, estes não devem poder investir em outras jurisdições – por exemplo, bancos em outros países, que com menores compulsórios ofereçam melhor remuneração a seus depositantes -, razão pela qual a repressão financeira se faz acompanhar de contas de capital fechadas e, em especial, limites rígidos a aplicações financeiras no exterior.
Várias críticas são feitas a essas políticas: elas desencorajam a poupança, impedem uma diversificação eficiente de riscos e, em especial, levam a uma alocação ineficiente de recursos, já que a poupança não é aplicada nos investimentos mais produtivos, mas naqueles disponíveis para o próprio poupador. Considerando que os países latino-americanos sofrem com a baixa taxa de poupança e a escassez de capital, essa política inibia significativamente o seu crescimento. Por esse motivo, as duas últimas décadas foram marcadas por um amplo processo de liberalização financeira e da conta de capital na maioria dos países emergentes, incluindo o Brasil, a ponto de o tema repressão financeira ter desaparecido do debate econômico.
Em um artigo recente, “A Decade of Debt”, porém, Carmen Reinhart e Keneth Rogoff voltam a esse tema, lembrando que a repressão financeira também caracterizou os países ricos de 1946 ao início dos anos 1970, e pode outra vez voltar nesses países (disponível em www.voxeu.org). O argumento desses autores pode ser resumido em três passos:
> Atualmente, o setor público dos países ricos apresenta os maiores níveis de endividamento desde o pós Segunda Grande Guerra e essa dívida deve continuar crescendo, pelo menos até 2019, nas contas do Deutsche Bank. Essa trajetória pode ser agravada pelo baixo crescimento do PIB e o aumento de despesas com saúde e previdência, associado ao envelhecimento da população. As famílias também têm dívidas mais altas que em qualquer outro momento da história documentada.
> A melhor solução é reestruturar essas dívidas, reduzindo seu valor nominal, alongando prazos e abaixando juros, mas isso não é politicamente palatável e pode ser complicado na prática, pois a dívida soberana está cada vez mais concentrada nas instituições financeiras domésticas, o que significa que um calote, disfarçado ou não, pode exigir a estatização do setor bancário.
> A repressão financeira é uma forma de baratear o serviço dessas dívidas e eventualmente trazê-las a patamares mais saudáveis. De fato, como mostram esses autores, esse foi o mecanismo utilizado para reduzir significativamente a razão dívida pública / PIB nos países ricos entre o pós-guerra e os anos 1970.
A repressão financeira seria, portanto, outra forma disfarçada, além da alta da inflação, de tributar os poupadores e melhorar a situação dos devedores, pelo menos do setor público. Se os países ricos seguirem esse caminho, isso pode ter implicações importantes para os emergentes. Primeiro, a disponibilidade de financiamento externo pode diminuir. De fato, já há países europeus que restringem a liberdade de bancos que receberam ajuda do governo emprestarem fora do país. Segundo, haverá alguma migração de negócios de Nova York e Londres para os centros financeiros asiáticos. A China quer transformar sua moeda numa alternativa ao dólar, e para isso terá de abrir seu mercado financeiro. Hong Kong e Cingapura seriam outros centros beneficiados.
Terceiro, a repressão financeira precisa ser complementada por medidas regulatórias, tributárias e envolvendo a conta de capital. Uma política como essa exigiria uma ampla revisão ideológica, com repercussão sobre as ideias defendidas por instituições multilaterais, como ocorreu durante a vigência do acordo de Bretton Woods, o ápice do período de repressão financeira, na visão de Reinhart e Rogoff. Isso sem dúvida influenciaria as políticas nos países emergentes, ainda que estes não devam enfrentar problemas semelhantes de endividamento: suas dívidas brutas (governo geral) devem chegar em 2015 em 33%, contra 105% projetados pelo FMI para os países ricos.
Fonte: Valor Econômico, 01/04/2011
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