Oligarquias, ditaduras, tiranias, capitanias hereditárias. Diante de uma quantidade imensa de países que se denominam democráticos, temos a impressão de que tudo isso passou. Como a maioria dos países, vivemos em uma democracia. Uma democracia exercida segundo a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu, bastante válida até os dias presentes, pois especializou e deu foco às atividades estatais. A teoria é ótima. O que fizeram com ela, bem, vamos em frente.
A democracia, originariamente, é um instituto privado. Foi entre as mais antigas tribos que a vontade da maioria se mostrou eficaz. Envolvia a escolha dos grãos, da área de pesca, da repartição dos ganhos, da punição aos ofensores e de como se defender dos intrusos. O que parece ser um regime de governo estatal ateniense, na verdade, é um sistema de regras advindo dos costumes entre familiares, produtores e comerciantes, anteriores às cidades-estados ou aos códigos escritos.
De fato, os Estados que optaram pelo regime democrático o fizeram sabendo o que ele já havia proporcionado de bom para as comunidades. E, ao longo dos séculos, os métodos estatais aprenderam com as regras do mercado privado e vice-versa. Ao que parece, a democracia não foi tão bem assimilada por entes públicos e suas autoridades, pois, em qualquer lugar do mundo, a cidadania não parece ser respeitada como deveria ser.
A democracia é uma situação na qual convivem cidadãos exercendo a cidadania. Cidadãos não são apenas indivíduos educados nas ciências acadêmicas e empíricas com capacidade para conhecer seus direitos e deveres. Pessoas sem estudo ou propriedades, independentemente de sexo ou raça, também o são. Esse é um dos aspectos da cidadania, como base do regime plural. Os cidadãos praticam a cidadania, que pode ser resumida no exercício dos anseios individuais em suas possibilidades, sempre reservando objetivos sociais conexos aos demais, para o desenvolvimento pessoal e coletivo, em parceria com o Estado responsável e responsabilizável. Assim, estado, cidadão e cidadania resultam em democracia. Ou deveria.
Hoje, seja em qual ponto do globo for, não existe democracia como indica o conceito básico. Isso se dá por conta da inexistência quase completa da cidadania e, por óbvio, do cidadão na acepção da palavra. Falta, no mínimo, a educação básica para isso, além das condições básicas de dignidade humana, como moradia com saneamento, alimentação nutritiva e acesso à informação e conexa aplicabilidade rentável.
O que existe em termos de democracia são versões mais ou menos deturpadas. E o cálculo para saber o quanto se vive em uma democracia ou não é espantosamente simples: alfabetização/educação até o nível médio per capita, somada à proximidade das necessidades dos eleitores com as atitudes dos eleitos em relação a tais necessidades e à capacidade do Estado em punir os traidores do pacto social e afastá-los permanentemente do exercício do poder político versus a situação realista do país e da população como um todo.
Fosse o escopo dessas considerações, entrar na história brasileira entre o que se quis e o que se tem, por mais intenso e aprazível que seja, levaríamos semanas de escritos e leituras. Porém, o objetivo aqui é falar a respeito da voz da democracia hoje.
Vamos relevar por um momento o fato de que a formação do cidadão brasileiro é deficiente em informar direitos. E vamos também desconsiderar, por um momento, o fato de a cidadania não ser exercida a ponto de ameaçar representantes eleitos e que a democracia em nosso país é uma falácia, com o devido respeito aos que sofreram durante os anos de chumbo. Pensemos na democracia em nosso amado país nesses dias.
Parlamentares eleitos pelo povo e que não receberam a sua parte da propina e dos desvios de verbas advindas dos tributos pagos pela população resolveram denunciar um dos esquemas ilícitos, ilegais e, acima de tudo, inconstitucionais de se distribuir parte dos recursos públicos a parlamentares para garantir aprovação de normas que interessam ao governo e aos seus parceiros empresários tão corruptos quanto.
Muitas outras operações escusas ocorreram e ocorrem em paralelo, mas essa, o mensalão, foi de tal monta que nem os que dela se aproveitaram conseguiram se calar, não por um arrependimento ou um rasgo de moralidade, mas por birra, por despeito. E assim, não restou opção aos “fiscais da lei”, o Ministério Público Federal, no caso, levar a representação e denúncia da situação à Corte Suprema do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao longo do julgamento, algumas evidências foram surgindo em relação à cidadania do brasileiro. Percebemos que o indivíduo, o grupos de trabalhadores e empreendedores que levam à sério seu empenho e pagam tributos “obscenos” estão muito mais atentos às atividades do Estado e de seus representantes. Assim, é correto dizer que a educação é importante para edificar princípios morais, mas não é a única fonte de formação ética. Resumindo, qualquer pessoa que assista a um noticiário televisivo compreende a situação e exige que as instituições façam o que traduza justiça.
E as condenações estão próximas. Acanhados e aprovando projetos de normas paradas há mais de 15 anos nas gavetas do Congresso, deputados e senadores procuram passar uma imagem de representantes dedicados. Alguns rompem com o partido do governo, outros apelam para aposentadoria por invalidez.
O poder Executivo segue distante dos demais na metodologia escolhida desde as campanhas eleitorais: o silêncio e a fuga. Quando aparece, tenta disputar com os outros dois poderes a pseudocapacidade e o pseudodireito de assumir unilateralmente a voz da democracia brasileira.
Por sua vez, o STF esbarra no sistema de formação da própria corte, permitindo a indicação do chefe do Executivo, com a aprovação dos parlamentares, a quem os julgadores, então, passam a, de alguma forma, dever gratidão, para sermos otimistas. Assim, deixam de lado a coerência para quedar na gratidão indevida e indesejada pela população.
Os três poderes foram idealizados no Iluminismo exatamente para evitar polaridades. Aqui, agora, no Brasil, diante de tantos desmandos e abusos do Estado como um todo, fica evidente que os três esqueceram tal premissa. Não trabalham em harmonia pelo bem comum. Agem além da independência, agem soberbamente isolados degenerando o país e o seu elemento primeiro: o povo.
Se a democracia pode ser resumida em decisões tomadas por uma maioria advinda de um grupo no qual todos são conscientes das opções, por certo, nenhum dos poderes estatais representa a vontade popular majoritária. Ou seja, nenhum dos serviços públicos nacionais especializados tem capacidade moral para dizer a democracia no Brasil pois lhes falta transparência, coerência e moralidade.
Minha conclusão é que existe uma voz suspeita e esmagadora do Estado e suas instituições corruptas e incompetentes e um sussurro revoltado e humilhado da população em seus manifestos e frustrações. Mesmo procurando terminar o que escrevo de maneira mais otimista, e até construtivista, penso que esse feito não será possível.
O que nos resta fazer? Olhar para nós mesmos e fazer a pergunta: que democracia eu quero para mim e para o meu país? Até porque já sabemos que, no momento, o país nada fará de positivo por nós. Vamos recomeçar, então? Quem sabe no Dia Internacional da Democracia de 2014 tenhamos algo a festejar? É o desejo de todos. Vamos trabalhar para isso.
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