É incrível a capacidade do Brasil de se autossabotar. Diante de uma recessão gigantesca, nosso Congresso vai criando condições para que não saiamos dela.
Como se não bastasse a irresponsabilidade com que a questão sanitária é conduzida, começamos a despertar monstros adormecidos: irresponsabilidade fiscal, corrosão da moeda, quebra de contratos, degradação do ambiente institucional e volta do ativismo estatal.
Alguns projetos em pauta são perigosos, capazes de suscitar uma crise financeira, como o PL 1.166, que estabelece teto para os juros cobrados por bancos e fintechs, o PL 911, que aumenta a CSLL de instituições financeiras, e o PL 675, que proíbe que os bancos negativem o cliente inadimplente.
Bancos têm um estereótipo dissipado de ser um setor que gera lucros abusivos, e nada parece ser mais legítimo que dar a sua cota de contribuição durante uma pandemia. Os projetos fazem uso do momento de exceção para justificar uma ação temporária. No entanto, menosprezam aspectos relevantes com efeitos negativos para a sociedade.
A limitação dos juros foi proposta sem levar em conta seus determinantes. Os bancos, ao estabelecerem o preço do crédito, esperam ser remunerados pelo risco de inadimplência e por seus custos operacionais.
Se o limite proposto não compensar esses fatores, o resultado será a retração das concessões, justamente quando o crédito é mais necessário.
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Falta compreensão de que os bancos emprestam o dinheiro dos depositantes. Por isso são regulados pelo BC e seguem acordos internacionais como o de Basileia. Se, com a expectativa de um aumento substancial da inadimplência, não forem cautelosos, o custo cairá no colo da sociedade. É bem possível que a limitação do juro gere o efeito de expulsão do tomador de maior risco do mercado.
O aumento da carga tributária, cuja alíquota efetiva já é maior que a dos demais setores, levará a um enfraquecimento da base de capital dos bancos concomitante à necessidade de aumento das provisões de perdas com a crise e à retração das linhas de crédito externas. Os bancos grandes aguentam tamanha descapitalização, mas isso não vale para os menores e para as fintechs. O resultado pode ser maior concentração.
Já a proibição da inscrição do consumidor inadimplente em cadastros negativos interrompe o fluxo de informação, fundamental nesse tipo negócio.
O inadimplente pode elevar seu endividamento muito além do que seu perfil recomendaria –sem o risco de ter as garantias executadas. Mais uma medida para deixar os bancos fora de algumas linhas ou selecionando apenas os bons pagadores.
É certo que o juro na ponta do tomador é muito alto. Há vários motivos: concentração do mercado, insegurança jurídica, subsídios cruzados (como a proibição da cobrança por determinados serviços) e custos, principalmente o tributário.
Diversas ações têm sido tomadas pelo BC visando incentivar a competição, melhorar a disponibilização da informação sobre os devedores e dar segurança às garantias dos empréstimos. Os projetos acima citados vão na direção oposta.
Instituições financeiras são apenas um dos alvos da chamada “agenda-bomba”, que propõe alterações contratuais. A lista inclui o confisco de lucro das empresas, a proibição de reajustar remédios e planos de saúde, a suspensão de pagamento de aluguéis e o impedimento de cortes de serviços essenciais por falta de pagamento.
A institucionalização da insegurança jurídica gera retração do investimento e uma alocação menos eficiente do capital. Qual empresário vai se sentir seguro em investir em infraestrutura em um país com esse ativismo regulatório? O investimento estrangeiro não especulativo já é baixo e ficará mais ainda.
Economia depende da confiança no cumprimento dos contratos. O alerta foi feito pelo BC na semana passada: corremos o risco de gerar um colapso da produção.
Estamos prestes a anular parte relevante do ganho da agenda pró-competitividade em andamento. Se há falhas de mercado, cabe ao regulador agir, considerando a informação disponível, e não o Congresso por voluntarismo. Todo cuidado é pouco quando estamos na iminência de abrir a caixa de Pandora.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 21/5/2020