Ação Afirmativa à brasileira: necessidade ou mito? A importância de distinguir o contexto racial brasileiro do norte-americano. Parte II
Como visto na 1ª parte desse artigo, durante praticamente um século, a segregação institucionalizada prevaleceu nos Estados Unidos. Por meio dela, os negros foram proibidos de freqüentar as mesmas escolas que os brancos, de ter propriedades, de viver em certas vizinhanças, de obter licenças para trabalhar em determinadas profissões, de casar com brancos, de se tornarem cidadãos, no sentido de votar e ser votado, de testemunharem, de ingressarem em lanchonetes, de beberem água nos mesmos bebedouros, dentre outras restrições. Como afirmou o historiador Chin: “Para muitos americanos, desde o hospital onde nasceram até o cemitério onde foram enterrados, todas as principais instituições sociais eram rigidamente segregadas pela raça”.
O sistema Jim Crow (nome pelo qual ficou conhecido o sistema legal de segregação) estabeleceu uma mensagem de inferioridade, fixando espaços diferenciados para negros e brancos. Originou-se da necessidade de controle pelos brancos daquela massa de negros livres competindo com eles no mercado de trabalho, uma vez extinta a escravidão. Legitimou-se a partir da ascensão de movimentos sociais organizados que pregavam a inferioridade da raça negra, como a Ku Klux Klan, organização racista que em 1920 chegou a reunir 5 milhões de membros no país, dentre os quais o Presidente Harry Truman, governadores, prefeitos, senadores e outras autoridades. Fortaleceu-se com a publicação da obra de Thomas Dixon, The Klansman — an Historical Romance of Ku Klux Klan e no filme baseado neste romance, The Birth of a Nation — de David W. Griffith´s, de 1915. Tais obras foram estrondosos sucessos à época – o filme chegou a ser transmitido na Casa Branca – e funcionaram como poderosos instrumentos para propaganda e exaltação da Ku Klux Klan.
As conseqüências desse perverso sistema estatal em que os direitos dos indivíduos foram separados com base em pseudoteorias de classificação racial não poderiam ter sido diferentes: a criação de duas sociedades paralelas, a dos brancos e a dos negros, com identidades, culturas e valores distintos. E que passaram a pouco interagir entre si.
Tamanho é o grau de incredulidade sobre a adoção desse sistema nos Estados Unidos de apenas 60 anos atrás que se faz necessário hoje transcrever algumas das ementas das leis que existiram naquela época. É importante escancarar, sempre que oportuno, as hipóteses que revelam à que nível de estupidez a espécie humana é capaz de chegar. Eis alguns exemplos de ementas das leis segregacionistas nos EUA:
* Enfermeiras — Não se pode demandar o trabalho de enfermeiras para trabalhar em hospitais, públicos ou privados, se houver pacientes negros;
* Ônibus — Todas as estações de passageiros devem ter pontos de espera separados e os assentos no ônibus devem ser separados para os brancos e para os negros;
* Estradas de Ferro — O condutor de cada trem de passageiros é solicitado a designar cada passageiro ao carro ou à divisão do carro e designar à qual raça o passageiro pertence;
* Restaurantes — Será ilegal conduzir um restaurante ou outro lugar que sirva comida na cidade no qual brancos e negros sejam servidos no mesmo cômodo, a não ser que os brancos e as pessoas de cor estejam efetivamente separados por uma sólida divisória estendida desde o chão até a distância de 2 metros ou mais e a não ser que seja providenciada uma entrada separada na rua para cada compartimento;
* Piscinas e Casas de Bilhar — Será ilegal para um negro e um branco jogarem juntos, ou na companhia um do outro, qualquer jogo na piscina ou de bilhar;
* Banheiros Masculinos — Todos os empregadores de homens brancos e negros devem providenciar banheiros separados entre eles;
* Casamentos entre Raças — Todos os casamentos entre uma pessoa branca e um negro são por meio desta lei para sempre proibidos;
* Educação — As escolas para crianças brancas e as escolas para crianças negras devem ser administradas separadamente.
Observa-se, desse modo, que nos Estados Unidos, mesmo após a abolição da escravatura, a todos os negros, ricos ou pobres, era negado o exercício de inúmeros direitos, independentemente da classe social ocupada. A aquisição de direitos, naquela sociedade, embasava-se na cor do indivíduo e isso perdurou até meados da década de 1960. Institucionalmente, o negro era um cidadão de segunda classe. Bem resumiu esse problema o professor de história norte-americana da Universidade de Chicago, John Hope Franklin: “O apoio público às escolas segregadas era a verdadeira síntese da discriminação. Preponderava o ponto de vista de que virtualmente tudo o que se gastasse com as escolas para negros era um desperdício, não só por serem os negros incapazes de aprender alguma coisa importante, mas porque o próprio esforço para educá-los lhes daria falsas noções das suas capacidades e os estragaria para o seu lugar na sociedade”.
É importante ressaltar, então, que o surgimento das ações afirmativas para negros nos Estados Unidos decorreu de uma situação histórica e específica, originada pela discriminação oficial até então praticada naquele país e que transformara a sociedade em um barril de pólvora prestes a explodir a qualquer momento. Criar programas positivos de integração forçada com base na raça foi a solução encontrada pelos governantes para tentar administrar a crise. Se nenhuma medida fosse adotada, ou se nada fosse feito para conter o ânimo da população segregada quando da eclosão dos movimentos de Direitos Civis na década de 60, ocorreria um conflito civil de proporções incalculáveis no território norte-americano.
Inicialmente propostas como providências neutras de combate à discriminação institucionalizada, nos governos de John Kennedy (1961–1963) e de Lyndon Johnson (1963–1969), a adoção das ações afirmativas, com tal significado, revelou-se de relativa eficácia. Uma política destinada tão-somente a combater a segregação e a proibir a discriminação não foi suficiente para acabar com os efeitos perversos da separação institucional. Como afirmou o constitucionalista Rosenfeld, “uma vez que o Estado havia praticado a segregação racial, um mero retorno à política cega à cor, todavia, não seria suficiente para conduzir à integração”.
Urgia a criação de programas para integrar o afrodescendente, a fim de aplainar os movimentos negros organizados, que protestavam com mais força, no final da década de 60. Criar programas positivos foi a solução encontrada pelos governantes para tentar administrar a crise, que se inflamava a partir dos atos contínuos de violência provocados pela Ku Klux Klan contra os negros, inclusive contra crianças negras, com a explosão de Igrejas Batistas e assassinatos em série.
Era preciso dar uma resposta à população exaltada, para que seus representantes tivessem a percepção de que alguma coisa estava sendo realizada e de que os assassinatos de Kennedy e de Martin Luther King, grandes líderes da causa negra, não os haviam deixado sozinhos. Nesse sentido, destaque-se, a onda de violência que se seguiu ao assassinato de King (4/4/1968) foi praticamente incontrolável. Em Chicago, Washington, Detroit, Nova York, Boston e em Memphis tropas federais precisaram ser chamadas para conter os ânimos da população revoltada. Inúmeras cidades decretaram Estado de Defesa. Centenas de cidades ficaram em chamas e cobertas de sangue. O funeral, realizado em Atlanta, reuniu 100 mil pessoas. A perda foi irreparável e as demandas se acirraram, a partir de então.
Assim, de medidas destinadas inicialmente apenas a efetivar uma política cega à cor, as ações afirmativas para negros nos Estados Unidos evoluíram para um significado mais ativo, de integração, a partir da consciência da raça. A política que antes se propunha cega, passou a enxergar a cor como um fator a ser considerado. Desta feita, não mais para subjugar os negros, mas para incluí-los.
Deste modo, uma das ironias sobre a criação das ações afirmativas nos EUA é que estas foram imaginadas e colocadas em prática por alguns brancos que estavam no poder e não por negros que idealizaram as medidas como mecanismo de integração. Os principais líderes do movimento negro organizado não se manifestaram favoravelmente a tal política integracionista e lutaram apenas para combater a discriminação institucionalizada. Martin Luther King chegou a se manifestar sobre o tema, advertindo que a adoção de políticas afirmativas seria contraproducente para o movimento negro, porque não conseguiria encontrar justificativas diante de tantos norte-americanos brancos pobres. Como afirma Skrentny: “Embora grupos de direitos civis e afro-americanos possam ter apoiado ações afirmativas como medidas preferenciais de direitos civis desde, pelo menos, a década de setenta, a política foi largamente uma construção da elite branca masculina, que tradicionalmente tem dominado o governo e os negócios”.
Não deixa de ser uma das maiores ironias o fato de as primeiras ações afirmativas no sentido inclusivo, por meio de cotas, terem sido implementadas por aquele que era conhecido como o “inimigo dos Direitos Civis”: Richard Nixon, republicano, conservador e que em campanha havia se declarado contrário à adoção de ações afirmativas raciais. Nixon era tão intolerante em relação aos negros que chegou mesmo a afirmar que as únicas hipóteses admissíveis de aborto seriam no caso de estupro e no caso de filhos miscigenados.
O que se procura ressaltar, nesse ponto, não são os rumos dos partidos políticos norte-americanos, nem a coerência dos seus ideais. Apenas se quer sugerir que a adoção de uma política afirmativa integrativa terminaria por acontecer de qualquer maneira, independentemente de quem estivesse no poder — e o fato de ter sido efetivada por um presidente republicano e racista talvez conceda mais veracidade a esta afirmação. O desenrolar dos fatos sociais não deixava margem ampla de escolha aos governantes: ou ceder, integrando os negros, ou acatar a responsabilidade de ter permitido a ocorrência, em seu governo, de uma segunda guerra civil. O ônus político seria um fardo grande demais e as conseqüências de assumir tal responsabilidade não seriam de agrado de nenhum governante, ainda mais Nixon, cuja eleição havia sido ganha por uma margem inferior a um por cento.
Apesar de as conseqüências das medidas afirmativas se aproximarem do objetivo de concretização da igualdade, na medida em que procuravam garantir espaços para os negros em áreas dantes proibidas, o que de fato ensejou a adoção dessa política foi a profunda ruptura na tranqüilidade social, a partir de uma sucessão de eventos que, praticamente, não deram escolhas para os governantes. Ou se instituem cotas raciais, ou se assume o ônus da Segunda Guerra Civil.
Assim, cotas raciais foram criadas nos EUA e implementadas nas décadas de 70 e 80 como espécies do gênero ações afirmativas, principalmente nos contratos de trabalho celebrados com o Poder Público. No entanto, é importante destacar que mesmo nos EUA as cotas raciais jamais foram consideradas constitucionais na esfera da educação. Essa foi a linha de entendimento firmada quando do julgamento do famoso casoRegents of the University of Califórnia vs. Bakke – 438 U.S 265 (1978) e reafirmada em 2003, quando dos julgamentos envolvendo a Universidade de Michigan, (Grutter vs. Bollinger et al e Gratz vs. Bollinger et al) e em 2007, no caso Parents vs. Seattle School District. Mesmo nos EUA, cotas raciais são inconstitucionais, no âmbito da educação!
Mais recentemente, outra importante decisão da Suprema Corte norte-americana evidencia e reforça a inconstitucionalidade das ações afirmativas baseadas na raça. No dia 29 de junho de 2009, ao julgar o casoRicci vs. DeStefano, concluiu-se que a cidade de New Haven havia praticado discriminação reversa com os bombeiros brancos, ao não promovê-los aos cargos de tenente e de capitão. Confira-se.
Em 2003, a cidade havia organizado provas orais e escritas como forma de selecionar os melhores bombeiros para a promoção. Aqueles que acertassem mais de 70% das provas seriam classificados, dentro de um número específico de vagas. Acontece que dentre tais vagas somente foram classificados candidatos brancos. A cidade, então, resolveu não promover ninguém, para que posteriormente não fosse acusada de discriminação racial. A Suprema Corte reviu esta decisão, argumentando, em suma, que ao proceder desta maneira, o município havia praticado discriminação reversa contra os homens brancos.
Como visto, a despeito das profundas diferenças que marcam as relações raciais estabelecidas no Brasil e nos EUA, aqui, os grupos favoráveis às cotas praticamente se limitam a observar o modelo norte-americano e a concluir pela necessidade de importação do modelo. Assim, para chegar à ilação de que viveríamos problema semelhante, os defensores das cotas raciais se utilizam especialmente dos indicadores sociais, que demonstram a precária situação econômica em que se encontram os negros no Brasil.
A equação formada pela leitura precipitada e superficial do modelo norte-americano, conjugada com os índices sociais desfavoráveis para os negros no Brasil, parece ter sido suficiente para que a implementação de ações afirmativas para negros aqui se tornasse, momentaneamente, o debate do dia, sem haver contudo uma análise mais detalhada das perversas conseqüências que a implementação deste sistema pode ocasionar.
As mais perversas consequências já vivenciadas pelos negros brasileiros não interressam à digníssima douta procuradora Roberta Kaufmann…mas não se preocupe, douta procuradora Roberta Kaufmann, pois as relações sociais no Brasil são muito diferentes das dos EUA…aqui, não haverá ruptura…portanto, não há motivos para ser contra as cotas raciais…afinal de contas, as circuntâncias do Brasil são totalmente diferentes das dos EUA…
CONT….
Tive o prazer de, à época, acompanhar a sustentação oral da Dra. Roberta Kaufmann no Supremo Tribunal Federal. Em raciocínio logicamente embasado, afastou, um por um, os sortilégios e embustes impregnados na ideia de cotas raciais. Infelizmente o nosso Judiciário foi aparelhado pela esquerda governante, de modo que encontrar imparcialidade, sensatez e justiça seja imcompatível com esse cenário. A resistência ao descalabro vigente se encontra apenas e tão somente na verdade, único obstáculo que jamais o politicamente correto poderá ultrapassar.
Cotas, quaisquer que sejam, escolhem arbitrariamente indivíduos, prejudicando outros tantos. Que mal não haveria, especialmente quando não prejudica algum estimado meu? Mesquinhez. Ao defender o sistema de cotas, um indivíduo esclarecido merece 2 adjetivos: parcial e injusto. Mau caráter é pressuposto.