As cenas de policiais espanhóis agredindo eleitores do referendo de independência da Catalunha parecem contar uma história simples: o desejo de liberdade de uma população sendo reprimido violentamente pelo imperialismo de Madri.
A realidade é mais complexa. A Espanha, como tantos outros países da Europa, esconde, por trás da ficção moderna do Estado-nação, diversas “nacionalidades históricas”, conforme a Constituição de 1978. Numa tentativa de selar a concórdia, deu grande autonomia mas proibiu a secessão.
A ação dos líderes separatistas visa a quebrar essa harmonia. Ao instituir um referendo ilegal, forçaram o Estado espanhol a um dilema: ou permitir a votação e sair desmoralizado, ou reprimi-la e ajudar a narrativa vitimista. Em ambos os casos, o radicalismo ganha ao abalar o acordo institucional e minar a confiança entre as partes.
Difícil levar o resultado a sério. Para os que querem permanecer espanhóis, não faria muito sentido sair de casa e enfrentar a polícia para votar num referendo considerado ilegal pelo governo que eles próprios defendem. Além disso, não houve qualquer controle sobre o processo, com relatos de que pessoas votaram mais de uma vez.
Seja como for, a tendência do mundo é a fragmentação. Passamos de 67 Estados soberanos em 1947 para 195 hoje. Os mais jovens são Timor Leste, Montenegro e Sudão do Sul. Já as tentativas de consolidar Estados soberanos em uma unidade superior naufragaram. A ONU é uma sombra do que já foi, e a União Europeia está em crise existencial.
O lado ruim disso são as ideologias que não raro acompanham o separatismo: nacionalismo, socialismo, nativismo, racismo. Tem um tanto disso tudo no movimento catalão. O lado positivo é que a separação reflete uma real diferença entre identidades e culturas suprimida por séculos. A Espanha terá que discuti-la, por bem ou por mal. O caminho ideal é permitir a separação, desde que ordenada e legal, como fez o Reino Unido no referendo de independência da Escócia em 2014.
A pluralidade de Estados menores traz a vantagem da maior concorrência entre governos. Com a população mundial mais informada e mais móvel do que nunca, há um incentivo para Estados pequenos arrumarem a própria casa. Um Estado grande pode se dar ao luxo da ineficiência. Um mundo com muitos Estados pequenos é um mundo mais livre.
É uma discussão longínqua para nós. O Brasil, de grandeza continental, fala uma só língua e é um só povo. No entanto, o mesmo raciocínio se aplica: sairíamos ganhando se Estados e cidades tivessem mais autonomia. O nome disso é federalismo, coisa que o Brasil tem só no nome.
Em um Brasil federalista, o dinheiro dos impostos não iria até Brasília para depois sumir. Ficaria onde foi arrecadado. As leis seriam formuladas para se adaptar às realidades econômicas e culturais de cada unidade federativa. A concorrência entre diferentes modelos seria, por si só, um incentivo para gerir bem a coisa pública e formular leis sensatas.
A Europa aprende, aos trancos e barrancos, a adaptar sua ordem política aos valores de liberdade e autodeterminação dos povos. Vencidos os excessos ideológicos, o horizonte é positivo. Da mesma forma, um Brasil em que o poder de decisão não fique só em Brasília, mas se estenda sobre todo o território, será também um Brasil mais livre e melhor para todos os cidadãos.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 03/10/2017.
OK Joel, mas, diferentemente do Reino Unido, não existe perante a “Lei” (constituição) espanhola possibilidade de separação, e por isso foi determinada “ilegal” (E aparentemente nem há interesse que algo mude em relação a isso por parte do governo espanhol). Logo, resta a Catalunha pleitear tal direito diante a formalização e homologação do plebiscito da forma da como foi feita perante sua população, sendo a opção restante, a guerrilha separatista.