O ilustre economista José Roberto Mendonça de Barros mencionou esse laureado filme produzido e dirigido por Stanley Kramer em 1958, a propósito das desavenças entre o presidente da Câmara dos Deputados e o ministro da Justiça. Maia e Moro remetiam, na visão acurada do ex-presidente do BNDES, a película Acorrentados.
Eis um belo palpite porque, com excepcional discernimento dos paradoxos que fazem o mundo, o filme narra o que acontece quando um prisioneiro negro (Sidney Poitier) e um branco (Tony Curtis) são – graças ao humor perverso e caprichoso do diretor da prisão – acorrentados um ao outro. Na curso da transferência para uma outra prisão, porém, há um acidente e o insólito par escapa engolfado pelo desafio de superar o ódio racial para fugir; ou segui-lo e caminhar no rumo de uma destruição mútua com o retorno à prisão.
Do mesmo modo que os condenados, Maia, Moro, Toffoli e Bolsonaro não podem escapar um do outro já que, apesar das intrigas e disputas largamente ampliadas pelo nosso gosto de fuxicar, eles estão interligados numa corrente institucional dentro do acorrentamento dos três poderes vigentes no regime democrático.
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Nele, há a divisão dos poderes oposta à dos governos monárquicos e autoritários. O experimento de Montesquieu que dissolve em três figuras institucionais – o parlamento eleito pela população; o seleto judiciário dos especialistas em leis; e o executivo eleito, exercido por um ator solitário, aparentemente mais poderoso e livre, mas inexoravelmente acorrentado aos outros poderes foi o que permitiu desconstruir os poderes absolutos da realeza legitimada por “direito divino” ao mesmo tempo que se dissolvia o poder do clero e se mantinha a liberdade de crença.
A divisão em três poderes revela o dinamismo indicativo de um regime em constante autocrítica, conflito e desafio. No Legislativo o povo é representado por maioria; no Judiciário por uma seleta minoria de especialistas; e, no Executivo, por quem tem afinidade com a opinião pública que o elegeu.
No filme de Stanley Kramer, o branco e o negro aprendem a se respeitar e acabam ligados por um laço que transcende a esperada negatividade de suas circunstâncias. De fato, quando a polícia descobre que os acorrentados fugiram, eles estão seguros da probabilidade de que um mataria o outro. O título original – The Defiant Ones: aqueles que se desafiam e aprendem a conviver concordando e aceitando suas diferenças lidas como irremovíveis, revela a grandeza do caso.
Pela mesma lógica, numa República, os três poderes funcionam desafiando-se, corrigindo-se e fecundando-se. Nela não há ironia ou paradoxo, na diferença honesta porque o dissídio faz parte do seu programa. As democracias, conforme tenho acentuado aqui, não existem para eliminar, mas para sublimar (e jamais esquecer ou comemorar o terror e a injustiça) conflitos dentro dos limites do bom senso e da boa-fé.
Numa democracia, portanto, o acorrentamento dos poderes não é acidental; ele é estrutural e inescapável. Nesse regime os poderes não são independentes, como deseja o nosso figurino cultural hierárquico, familístico e mandonista. São, isso sim, interdependentes. As oposições exercitam duas diferenças numa cooperação sem a qual justamente o igualitarismo como um ideal não teria lugar. Aqui, cada poder se legitima com (e não contra) o outro.
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PS: É claro que o leitor quer sabe o final do filme invocado, mas esquecido por Mendonça de Barros. Vendo-se livres, os acorrentados procuram romper os grilhões e comer. Ao tentar roubar um mercado, são perseguidos por uma turba de brancos que deseja linchá-los. São salvos por uma boa alma, encontram um menino cuja mãe se envolve com o branco e ajuda-os a quebrar suas correntes. A mulher, obviamente racista, ensina um falso caminho de fuga para o negro, mas o branco descobre a traição e, quando vai avisar a quem era agora um amigo, é ferido pelo menino. Mortalmente exausto, ele acha o companheiro. Finalmente, a polícia encontra o negro cantando desafiadoramente, tendo nos seus braços o branco ferido.
Fonte: “Estadão”, 03/04/2019