De janeiro a abril deste ano, cerca de 90 professores da rede municipal do Rio se afastaram das salas de aula devido à violência no entorno e dentro de escolas. Curso ensina educadores quando fechar a unidade por falta de segurança. “A senhora tem que chamá-lo de Seu Macaquinho”. Esse foi o conselho que a diretora de um Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI), em Senador Camará, recebeu de um líder comunitário minutos antes de ser apresentada ao chefe do tráfico local. Mônica Cristina Cezar da Silva, de 42 anos, reclamava das constantes invasões e depredações dentro do colégio por não aceitar pagar uma “taxa de segurança” de R$ 300 mensais a bandidos. O traficante, que foi até o EDI acompanhado de seguranças armados, disse que “teria que matar alguém para isso acabar” e exigiu que a diretora lhe desse a chave da escola. Era o fim de uma carreira de 18 anos na rede municipal de ensino.
Mônica encerrou a conversa e entregou o cargo no mesmo dia. Isso foi há dois anos. Foi colocada em licença médica com transtorno de ansiedade e depressão, segundo o diagnóstico psiquiátrico. A Secretaria municipal de Educação diz não ter dados sobre o êxodo de professores das salas de aula — seja por licença médica, pedidos de transferência escolar e exonerações. São profissionais que estão desistindo de trabalhar em meio à violência cotidiana nas favelas da cidade. O departamento de recursos humanos da secretaria estima que 10% dos 935 pedidos de exonerações feitos entre janeiro e abril deste ano tenham sido decorrentes do aumento da violência, mas não há um número oficial.
— Fui diretora do EDI por três anos. Falavam para mim: “A senhora tem que fechar com a gente”. Nunca fiz acordo com bandido, aí passaram a invadir o espaço. Quebravam tudo, televisões, aparelhos de ar-condicionado, computadores, pichavam as paredes com sangue, quebravam ovos, jogavam comida no chão. Já esfaquearam a minha cadeira e deixaram o facão em cima dela. Fui cinco vezes à 34ª DP (Bangu) registrar queixa. Eu dizia que precisava de ajuda, que tinha 240 bebês sob minha responsabilidade. Até que o traficante apareceu e descobri que estava completamente insano. Não deu mais para ficar — contou Mônica, que está de licença desde então.
Claudia Costin: Ensinar e aprender em áreas de violência
Seis mil de licença médica
Assim que César Benjamin assumiu a Secretaria municipal de Educação, Esporte e Lazer, no início do ano, foram convocados 825 professores, classificados em concursos, para compor o quadro da rede, com atuais 43 mil docentes. Sem isso, 23 mil crianças começariam o ano sem serem atendidas. A princípio, esse número de professores seria suficiente. Porém, com novos pedidos de exonerações, aposentadorias e licenças médicas, a prefeitura teve que chamar mais 688 concursados. O número de profissionais de educação de licença médica é quase dez vezes essa quantidade — são mais de seis mil, cerca de 13% do total, segundo a secretaria, que não informou quantos estão de licença psiquiátrica.
Uma das justificativas da secretaria para o grande número de pedidos de exonerações é que muitos professores querem migrar do período de trabalho de 16 horas ou 22 horas e meia semanais para 40 horas semanais, o que é questionado pela coordenadora geral do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe), Suzana Gutierrez.
— Se o professor pode acumular matrículas por que ele iria se desfazer de uma para ficar com a outra somente? Para nós, o debate da violência precisa descer ao chão da escola. A prefeitura não age com transparência, não se sabe o número de profissionais que estão adoecendo por causa da exposição à violência — afirma Suzana. — São inúmeros relatos de professores que vêm desistindo de trabalhar, que estão pedindo exoneração, e de uma grande quantidade com problemas psiquiátricos e psicológicos.
Segundo a Secretaria municipal de Educação, em relação aos pedidos de licenças médicas, houve um aumento de 197%: foram 1.343 pedidos em 2014-2015 e 3.998 em 2015-2016. A pasta informou que a rede de ensino ainda necessita de 96 professores de ensino infantil, 413 de ensino fundamental para os anos iniciais e outros 179 de ensino fundamental para os anos finais. Doutor em educação e assessor especial para a área de educação da Unesco no Brasil entre 1998 e 2009, Célio da Cunha diz que o problema da violência no entorno e dentro de escolas é crônico e vem sendo acompanhado pela entidade há pelo menos 20 anos. Ele fala das consequências negativas para os professores, que acabam sofrendo da Síndrome de Burnout, um tipo de estresse persistente relacionado a situações no ambiente de trabalho:
— Antes a principal preocupação da Unesco era o bullying. Agora, é a violência que afeta o aprendizado, a formação de adolescentes e crianças. Para os professores, a situação de tensão permanente pode levar à Síndrome de Burnout. São os baixos salários que os levam a precisar dar aulas em duas, três escolas e, no Rio, a ter 30, 40 alunos em sala num ambiente de total insegurança. A capacidade didática cai muito.
Há grupos em redes sociais criados por profissionais que vivenciam o problema, para que cada um conte seu drama. O da professora Nívea Segreto, de 46 anos, mostra a gravidade da situação. Ela contou ao “Globo” que perdeu um bebê com cinco meses de gestação por causa do estresse crônico. Pediu exoneração e deixou a cidade com o marido para morar no interior do estado.
— Tenho 30 anos de magistério, sete na Secretaria municipal de Educação. Foram os piores sete anos da minha vida. Abandonei a cidade, pois adoeci em função da violência dentro e fora das escolas. Trabalhava no Morro dos Macacos, antes da chegada da UPP. Também trabalhei na Mangueira. Os conflitos eram constantes. Até munição encontrei sobre a mesa da minha sala. Perdi um aluno assassinado pelo tráfico. Eu estava grávida nesta época e acabei perdendo o bebê. Os meus médicos, incluindo o psiquiatra, garantem que o estresse foi a causa. Abandonei o Rio. Ainda vivo como ex-combatente de uma guerra que não acabou, tenho medo de tudo, sou extremamente sensível ao barulho, tenho pesadelos — relatou Nívea.
Outro professor, que continua trabalhando na rede municipal e, por isso, pediu anonimato, dava aulas também no Morro dos Macacos, onde roubaram seu notebook. Ele chamou o responsável pelo aluno, que tinha levado o aparelho. Não imaginava que o pai do estudante era o chefe do tráfico no morro.
— Eu disse a ele que esperava a devolução do computador, que não continuaria trabalhando na escola se o notebook não aparecesse. O aparelho nunca foi devolvido, e eu pedi transferência para outra escola — contou.
Tranquilidade só no Leblon
O professor de artes cênicas Marco Aurélio Aquino da Silva, de 51 anos, chegou a escrever uma carta para o secretário César Benjamin relatando seu drama: dar aula numa escola em Santa Cruz, numa região extremamente violenta. Quando conseguiu a transferência, foi como sair do inferno e ir para o purgatório, pois ele passou a lecionar no Morro do Telégrafo, na Mangueira.
— No dia em que fui me apresentar na escola, fui parado por um grupo. Falei que era professor, que ia para a escola. Disseram que tudo bem, mas mandaram eu ligar o pisca-alerta do carro. Cheguei à escola desesperado. Pedi transferência novamente e hoje estou numa unidade no Leblon, onde pela primeira vez posso exercer meu trabalho com tranquilidade — disse. — Em Santa Cruz, perdi, num confronto com a polícia, um aluno que vi crescer. Vi dois cadáveres dentro da escola. Fui ameaçado de morte por um aluno que repreendi. Fiquei um ano e meio de licença médica.
Fonte: “O Globo”.
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