O senhor já quis comer a mulher de um amigo? — perguntou de supetão o motorista que me levava ao aeroporto.
Na dúvida que sempre me assola diante dessas questões triviais, tergiversei e tentei retomar o nosso papo que falava de problemas muito mais fáceis de resolver e decidir, tais como: se o Brasil queria mesmo fazer uma bomba atômica, se um dia íamos acabar com a corrupção, o desastre ecológico e — é óbvio — se conseguiríamos chegar ao tão almejado hexa.
A pergunta indiscreta havia, como as catástrofes, liquidado a cordial troca de ideias devotada ao estilo Dunga e em como ele se projetava, como a voz invisível dos ventríloquos, nos jogadores.
Eu dizia que, com toda essa cobrança, ser técnico da seleção nacional era um papel duríssimo de desempenhar.
Se, concluí, fossemos assim vigilantes e exigentes com nossos prefeitos, governadores e presidente, o Brasil seria outro.
Mas logo voltamos às avaliações do “nosso time”, de seus pontos fortes e fracos da defesa e do ataque (que meu interlocutor julgava inexistente), o que, logo em seguida, pipocou — como um pênalti — no dilema Hamletiano-brasileiro de comer ou não comer a mulher do amigo, tendo como pano de fundo o dever de ganhar a Copa do Mundo.
— Você diz — repliquei tentando ganhar tempo — trair uma amizade pela atração sensual? — Isso mesmo. Dar um drible e fazer gols na esposa do amigo. Ela quer, sempre me deu mole e outro dia me contou que o cara, convertido a uma dessas seitas religiosas, não comparecia mais em casa… — Não vinha pra casa? — Não, doutor, não trepava! Deixava a moça, um baita mulherão desse tamanho, sem assistência. Era como perder um gol feito. Como roubar o dinheiro do povo! — É bonita? — retruquei me sentindo mais burro do que nunca.
— Bem, bonita, mesmo, não é, mas é um morenaço: alta, coxas grandes, bundão turbinado. Do jeito que eu gosto.
— Como foi que você sentiu que dava pé? — Foi durante um almoço, quando ela ficou passando o pé na minha perna.
Olhei pro amigo e ele, ali do nosso lado, na cabeceira da mesa, comia inocente e tranquilo o seu feijãozinho com arroz.
Parecia a gente assistindo a esses jogos de botão dessa copa e, enquanto isso, eu, como um atacante desesperado, tentava chegar ao gol e ficava naquela esfregação de pé na perna e de perna no pé com a esposa do cara. Naquela noite não dormi. O pior é que eu pensava mais no amigo do que na mulher. No dia seguinte voltei e, num entretempo de varanda, bati um pênalti: dei um beijo nela, o que só veio piorar as coisas, pois com o beijo, marquei o jogo. Agora eu tinha mesmo que comer a mulher do meu amigo.
— Você ficou entre a amizade e o amor — resumi, reafirmando imbecilmente o óbvio.
— Como homem, eu tinha vontade e queria ir em frente; mas como amigo queria sair correndo.
Esse era um sujeito que só tinha me ajudado na vida.
— Eu sei…É como torcer contra o Brasil! — No dia do jogo contra a Coreia ela me liga. O marido vai viajar com o grupo religioso, ela ia ficar sozinha em casa. Não era um convite, era uma ordem: se você é homem, vem cá e me come! Mas em vez d’eu ficar alegre, fiquei numa puta dúvida. Todo mundo fala que come todo mundo, mas como eu ia comer a mulher do amigo em dia de jogo do Brasil? — Então eu falei pra mim mesmo: você não queria, seu merda! Agora vai em frente e trai a amizade do teu melhor amigo. Entrou na Copa, tem que jogar e… vencer! — Você foi? — Com muito medo. O jogo estava começando quando eu bati na porta.
Ela abriu e foi logo dizendo, muito sem graça, mas muito sem graça mesmo, que o marido estava em casa. A excursão fora suspensa por causa do jogo.
Meu risinho de alívio deixou ela com raiva.
E, para piorar as coisas soltei, sem querer, um “ótimo, vamos ao jogo”, que vinha do fundo do meu coração e que não pegou nada bem.
— Ótimo, seu putinho? — disse ela.
— O cara e a copa estão aí atrapalhando tudo e você diz ótimo? — Desculpei-me falando do nosso amor pelo Brasil. E emendei num mentiroso “depois a gente resolve”, mas nada escondia o meu alívio. Senti que o adultério havia acabado naqueles abraços gritados de macho que troquei com meu amigo quando o Brasil fez seus gols. Mas quando pensei novamente no adultério, a Coreia marcou.
Será, doutor, que se eu trair meu amigo o Brasil perde pra Costa do Marfim? O táxi chegava no aeroporto. Pensei em fazer uma preleção sobre o pensamento selvagem que liga tudo com tudo, mas desisti.
Minutos depois, ao escolher meu lugar no avião, me dei conta que tudo o que é valorizado ao extremo, demanda escolha e que escolher obriga a ligar coisas e pessoas. A pergunta tem todo cabimento. Afinal, se a lua influencia as marés, não haveria também um laço entre o adultério (sobretudo com a mulher do amigo) e a derrota? Os guerreiros Zulus (essa poderosa tribo da África do Sul) morriam em combate se suas esposas os traíssem. Assim me ensinou um saudoso antropólogo sul-africano que não tirava o chapéu para conservadores ou visitava países debaixo de ditaduras, Max Gluckman.
Fiquei com a pergunta entalada na cabeça.
Hoje, domingo, liguei para o motorista.
Ele, exultante, responde aos berros que está comemorando a vitória sobre a Costa do Marfim.
— Com ela, professor! Com ela aqui do meu lado e num motel! Sexo e vitoria no futebol! Pode haver coisa melhor? — Sem dúvida, mas e os outros jogos da Copa? — disse, com a inveja e com a maldosa ambiguidade intelectuais.
— Ora, doutor, o futuro a Deus pertence!
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 23/06/10
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