O Brasil está comemorando um feito histórico, a Selic no patamar mais baixo desde que foi criada, com segurança e sem artificialismos. Também conhecida como taxa básica de juros, é determinada pelo Banco Central, nas reuniões do Copom, e fixa o custo de carregamento de alguns títulos da dívida pública e de recursos financeiros de bancos por um dia.
Com a taxa básica mais baixa, a dinâmica da dívida pública melhora e, com custo de captação menor, aumenta o espaço para que os bancos reduzam as taxas de juros cobradas por empréstimos e deveria induzir a um aumento da relação crédito/PIB. Não é o que se observa. O saldo total de crédito é menor agora do que quando a Selic começou a cair e o efeito no custo dos financiamentos foi anêmico.
Enquanto que a Selic caiu mais de sete pontos percentuais desde o início do ciclo de reduções, o Índice do Custo de Crédito (ICC) calculado pelo Banco Central baixou menos de dois pontos percentuais (de 23,2% a 21,5%). Proporcionalmente, a Selic declinou mais de 50% e o ICC menos de 10%.
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O motivo da rigidez das taxas do crédito é que a intermediação financeira no Brasil é estruturalmente ineficaz. A margem bruta de intermediação (receita líquida/receita bruta) é de 67% no agregado e no cheque especial é de 97%. Entretanto a margem líquida média do sistema (lucro líquido/receita bruta) é inferior a 8%.
Além da redução da Selic, o Banco Central adotou a agenda BC+, com medidas para atingir quatro objetivos meritórios e relacionados entre si: mais cidadania financeira, legislação mais moderna, crédito mais barato e SFN mais eficiente. É indiscutível que o plano de trabalho é bem intencionado, assim como é fato que seus efeitos no custo do crédito foram materialmente irrelevantes, até agora.
Complementando a agenda do Banco Central, a Fiesp lançou, na semana passada, a campanha “Chega de engolir sapos”, contra os juros altos. Surpreende que numa comunidade com milhares de engenheiros não tenham feito contas sobre o por quê dos juros altos. Com uma margem líquida de 8%, não há como reduzir taxas sem colocar em xeque a solvência do sistema. Manifestações e sapos não abaixam juros. A raiz dos problemas está na obsolescência estrutural do sistema e no conservadorismo dos banqueiros, não na sua ganância.
Os efeitos da agenda BC+ e do sapo da Fiesp serão imperceptíveis, mas apesar deles, nos próximos meses, serão observados avanços na dinâmica dos financiamentos como resultado de dois outros fatores, a retomada da economia, lembrando que a oferta de crédito é procíclica, e a transição para uma nova etapa no ciclo do crédito.
O sistema está saindo da quarta e última fase, a cinza recuperação, e deve entrar na primeira, a verde contribuição (para detalhes do ciclo, ver: “Cores e dores dos sistemas financeiros”, Valor Econômico 2011). O saldo total de crédito vai crescer, os critérios de concessões vão ser reduzidos, os prazos serão alongados e as taxas de juros reduzidas. Nesta etapa corre-se o risco da afirmação do consequente.
Em lógica formal, a afirmação do consequente é um raciocínio do tipo: “Se chove, o chão fica molhado; logo, se o chão está molhado, é porque choveu”. Lembrando que o chão pode estar molhado por outros motivos, como o uso de uma mangueira; é evidente que a conclusão do raciocínio não deriva das premissas. Trata-se de um argumento falacioso.
No caso dos juros, a falácia está em inferir que a queda a ser observada será um resultado exclusivo das manifestações dos industriais e da agenda BC+. É perigoso, pois os avanços dos próximos meses serão de pequena magnitude, muito aquém do que é possível, e podem induzir a pensar que é só uma questão de tempo para que o sapo vire um príncipe.
Outra afirmação do consequente é a justificativa para aprovar a lei do cadastro positivo. É inquestionável que mais informações melhoram as decisões de concessões de financiamentos, todavia, o projeto no Congresso Nacional apenas aumenta a assimetria informacional. Para obter os resultados anunciados e ter um impacto positivo no crédito é necessário adicionar medidas para garantir seu papel educador, seu uso adequado na precificação de operações, limites de conteúdo e de acesso e torná-lo interativo. Da forma como está anunciado, é mais uma falácia.
A Fiesp está certa, dá para parar de engolir sapos. As taxas de juros cobradas inviabilizam muitos empreendimentos industriais, tiram competitividade ao país e causam alguns danos irreversíveis ao setor não financeiro. O Brasil pode mais e necessita de uma intermediação que além de sólida e rentável, seja estável, inclusiva, eficiente, inovadora e sustentável.
Isso é possível substituindo a arquitetura do SFN da época da inflação alta, com moeda remunerada, múltiplos indexadores, subsídios cruzados e outras deformidades, que já esgotaram sua serventia, por outra construção de crédito responsável adequada ao Brasil de hoje.
O potencial de melhorias é grande. O momento é oportuno: o equilíbrio externo é sólido, os bancos estão capitalizados, a inflação está controlada, a economia vai crescer mais de 3% este ano, a Selic está num piso histórico e há uma demanda alta da sociedade por mudanças. A transformação pode ocorrer com ajustes de liquidez, tributação, indexação, precificação, subsídios cruzados, responsabilização, transparência e regulação.
São medidas que dependem apenas do Banco Central e do Tesouro Nacional, que têm equipes altamente gabaritadas. A mudança pode ser rápida, basta não acreditar na afirmação do consequente que de tem que ser gradual.
Uma vez aprovadas as mudanças, é razoável esperar que o governo arrecade mais, a lucratividade e a legitimidade dos bancos aumentem, as taxas despenquem, os prazos se alonguem, a inadimplência caia e que a indústria tenha acesso a financiamentos em condições similares à concorrência em outros países para que possa produzir e empregar mais.
Urge beijar o sapo e transformá-lo em príncipe.
Fonte: “Valor Econômico”, 21/03/2018