O pedido de demissão do agora ex-ministro da Justiça Sergio Fernando Moro tumultua agudamente a já combalida realidade política nacional. Se não bastassem as fundas repercussões da tragédia do coronavírus, as placas tectônicas de Brasília entram em frenética dinâmica acelerada, ganhando temperatura e pressão. As consequências são naturalmente imprevisíveis, impondo às autoridades públicas o dever de agir com altura e responsabilidade na condução de assunto tão delicado.
Ora, ninguém vira ministro sem o aval presidencial, como ninguém permanece no cargo contra a vontade do presidente. Por assim ser, a sucessão ministerial é um fato corriqueiro na vida governamental. O problema é que, no caso, o demissionário, além de sério, respeitado e ilustre, encarnou o decidido combate à corrupção política, levando tal imagem e credibilidade à Esplanada dos Ministérios. Surpreendentemente, Sergio Moro foi demolidor em seu discurso de despedida, insinuando uma série de irregularidades que, uma vez comprovadas, poderão resultar em potencial crime de responsabilidade presidencial (artigo 85, CF).
Objetivamente, além de indicar indevida pressão política para a substituição da chefia institucional da Polícia Federal, o ex-ministro da Justiça foi categórico em questionar a veracidade de determinadas informações oriundas do Planalto. Adiante, foi sugerido que a exoneração, “a pedido”, do delegado Maurício Valeixo teria suposto vício formativo, em ato solene, publicado no Diário Oficial. Por fim, foi ainda revelado que o ministro da Justiça fora surpreendido por uma exoneração às escuras, sem a aconselhável diplomacia da prévia comunicação presidencial.
Em tempo, as acusações foram rechaçadas pelo digno presidente da República. Todavia, o entrechoque de versões faz questionar a verdade, abrindo o campo político para uma série de consequências imprevisíveis. Mas tal imprevisibilidade não é absoluta. Sob qualquer ângulo ou hipótese, ainda inexistem condições materiais para a abertura de um processo de impeachment. Por seu turno, com vistas à exata apuração dos fatos, a oposição, nos termos do artigo 58, §3°, da CF, poderá coletar assinaturas e requerer a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para a apuração do fato determinado.
Nos termos da lei, a instauração de CPI depende de três exigências certas e determinadas: I) subscrição do requerimento por um terço dos membros da casa legislativa; II) apontamento do fato determinado a ser objeto de investigação; e III) fixação de prazo definido. Sobre o ponto, a colenda Suprema Corte já decidiu que “a norma inscrita no artigo 58, §3°, da Constituição da República destina-se a ensejar a participação da ativa das minorias parlamentares no processo de investigação legislativa, sem que, para tanto, mostre-se necessária a concordância das agremiações que compõem a maioria parlamentar” (DJ 4/8/2006).
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Como se vê, a prerrogativa de instauração de CPIs é um direito das minorias políticas, que — em uma democracia dinâmica e pulsante — tem o intransferível dever de investigar eventuais descaminhos do governo estabelecido. É lição antiga que a vitória das urnas não é um cheque em branco à autoridade presidencial, pois, na República de poderes independentes e harmônicos entre si, ninguém pode tudo, embora muito possa querer.
Em sua insuperável monografia sobre o impeachment, a sabedoria superior de Paulo Brossard faz realçar que “embora possa haver eleição sem que haja democracia, parece certo que não há democracia sem eleição. Mas a só eleição, ainda que isenta, periódica e lisamente apurada, não esgota a realidade democrática, pois, além de mediata ou imediatamente resultantes de sufrágio popular, as autoridades designadas para exercitar o governo devem responder pelo uso que dele fizerem, uma vez que ‘governo irresponsável’, embora originário de eleição popular, pode ser tudo, menos governo democrático”.
Sem cortinas, a democracia, à luz do princípio da legalidade, exige responsabilidade categórica dos titulares de poder. O constitucionalismo contemporâneo, em sua normatividade superior, assegura a racional contenção de incontroláveis ímpetos arredios, outorgando aos cidadãos, sem qualquer discriminação, direitos fundamentais invioláveis e de fiel observância cogente. Por sua vez, em sua dimensão democrática, a Constituição é absolutamente intolerante com abusos de qualquer natureza, fazendo da política um instrumento de elevação da razão pensante, em favor de decisões públicas motivadas, justas e decentes.
Nas lides do poder, cabe à oposição ter equilíbrio, inteligência e coragem para a tomada de atitudes que, ao invés do caos, garantam a paz, a integridade ética e honra política nas instituições da República. Com o brilhantismo que lhe era habitual, o saudoso professor Geraldo Ataliba bem pontuou que “o principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às ideias e ações do governo”, vindo a concluir que “pela proteção e resguardo das minorias e sua necessária participação no processo político, a República faz da oposição instrumento institucional do governo”.
É lógico que eventual instauração de CPI, para fins de investigação parlamentar dos fatos arrolados pelo ex-ministro Sergio Moro, causará inconvenientes ao Planalto. Em época já tensionada pelo drama da Covid-19, caberá à oposição ter cautela e altura para medir o tamanho do seus atos e suas possíveis consequências. De nada, absolutamente nada, valerá desgastar o governo para inviabilizar o futuro Brasil. Impeachment é assunto sério e complexo, não servindo para aventuras irresponsáveis nem para traquinagens oposicionistas.
A hora exige grandeza, espírito público e fiel preocupação com o bem-estar dos cidadãos brasileiros. Independentemente do que virá, o processo histórico de desenvolvimento ou retrocesso do país seguirá a sorte das escolhas que forem feitas. Que não pratiquemos a irresponsabilidade das soluções de empreitada. Afinal, entre o sim e o não, há uma Constituição que serve de bússola a nosso destino republicano.
Fonte: “ConJur”, 07/05/2020