Os bancos, os comentaristas, e até o presidente Trump garantem: esta crise não é financeira. Porém, enquanto tentam nos convencer, as notícias sobre o sistema bancário baseado no dólar nos remetem cada vez mais à tenebrosa crise de 2008.
A partir dos gatilhos do coronavírus e da guerra de preços de petróleo, observa-se uma súbita escassez de caixa nas empresas e nos bancos, a despeito das bazucas de injeção monetária detonadas pelos bancos centrais nos últimos dias.
Os setores sensíveis ao coronavírus e ao petróleo representam apenas 15% dos títulos de dívida totais. Não houve até agora rebaixamentos de notas de rating nem inadimplência ou quebradeira. O que está causando a falta de caixa?
Durante a crise de 1982, Brasil, México e Argentina deixaram de honrar seus compromissos em razão dos juros em alta. Os empréstimos a países em desenvolvimento representavam menos de 15% da carteira de ativos dos bancos, mas mais de 2,5 vezes seu capital, que é o colchão patrimonial cuja função é resguardar a solvência do banco.
Brasil e companhia quebraram o Citibank e boa parte de Wall Street, evaporando seu capital, para desespero do Fed e de seu então chefe, Paul Volcker.
No século 3 a.C., Arquimedes descobriu o princípio da alavanca. Uma tábua apoiada num ponto fixo multiplica a força mecânica aplicada ao peso que se encontra na outra extremidade, próximo ao ponto fixo.
O princípio da alavanca transposto para investimentos significa que você pode comprar mais ativos do que possui em dinheiro, por meio de uma dívida. Quanto maior a dívida levantada para comprar ativos, maiores serão os ganhos (na alta) e as perdas (na queda).
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O sistema financeiro internacional é baseado em uma alavancagem insustentável. Os bancos têm só $ 7 de capital para absorver perdas e $ 93 de dívidas (e passivos de curto prazo) para cada $ 100 em ativos.
Na segunda-feira (16), a Bolsa de Nova York caiu 12%. Se os ativos dos bancos se comportassem como a Bolsa, em apenas um dia os bancos quebrariam e ainda ficariam devendo mais de meio patrimônio.
Ou seja, quando caem os preços dos ativos, a dívida fica evidenciada, há corrida por liquidez pelas empresas, o caixa dos bancos sofre pressão. A alavancagem descomunal torna o sistema inerentemente instável e destrói de tempos em tempos poupanças de vidas, mas não o emprego dos banqueiros
que alavancaram o sistema.
Depois da crise de 1982, Volcker liderou os esforços para estabelecer padrões internacionais de capital mínimo dos bancos, as chamadas regras da Basileia, do Bank for International Settlements (BIS), uma espécie de cartel dos bancos centrais. No entanto, os banqueiros integram o comitê da Basileia e não permitem o aumento do capital mínimo exigido.
O ex-banqueiro central Charles Goodhart, um dos únicos que tiveram acesso restrito às atas sigilosas do BIS, confirma que as causas fundamentais das crises desde então nunca foram endereçadas: a falta de capital e a responsabilização dos acionistas e administradores dos bancos.
Nesta crise, a escolha é novamente empurrar a realidade para baixo do tapete. Os bancos exigem ainda mais alavancagem e a desconsideração das regras prudenciais. Novamente, a conta associada às barbeiragens dos banqueiros será “externalizada”, ou seja, haverá resgate disfarçado, com a conta enviada ao contribuinte. Como o social-democrata Obama patrocinou em 2008.
Liberais obviamente são contra o socorro a banqueiros (ou empresários) irresponsáveis com dinheiro tomado do cidadão. Se um banqueiro põe seus clientes em risco, a responsabilidade é dele, e não do Estado.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 18/3/2020