Não se muda a sociedade por decreto. É o título de um livro publicado na década de 80 de Michel Crozier, um liberal e especialista em teoria das organizações que tentou entender e explicar as amarras da sociedade francesa. A analogia nos ajudará na caminhada de hoje.
Não vi a minuta do decreto sobre alfabetização. Apenas li reportagens publicadas no dia 20 de março em jornais e uma revista de circulação nacional. As matérias me citam fora de contexto – não li o decreto, e nas reportagens, sugere-se que o estou comentando. Também não participei de qualquer debate sobre o tal decreto – participei, a convite do MEC, de um evento, junto com outros eminentes colegas especialistas no tema, em que cada de um de nós apresentou seu trabalho acadêmico e suas considerações sobre o tema. Não houve qualquer interação ou debate. No meu caso, como estava fora do Brasil, minha apresentação se deu por videoconferência. Agora vamos ao tema.
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A alfabetização é um problema grave, gravíssimo, que precisa ser resolvido com urgência. Pode servir como símbolo de uma nova empreitada para começar a resolver os outros graves problemas da educação. No caso concreto, para lidar com a questão, é preciso começar, primeiro, definindo o que seja alfabetização. Essa definição deve repercutir no currículo, nos livros e materiais didáticos, na formação de professores e na avaliação. Se o Brasil vier adotar a definição universalmente aceita de “alfabetização” – apropriação do código alfabético, terá de promover uma mudança radical em todos esses itens acima. Mas nada disso é assunto para decreto. Este, pelo que foi noticiado pela imprensa, não trata disso. E ainda trata de outras questões, como a aritmética e a contagem nos dedos, que nada têm a ver com alfabetização.
É preciso priorizar a alfabetização. É possível e necessário promover intervenções de curto prazo, com estratégias adequadas, pois o país possui alguns casos de comprovado sucesso em larga escala. Também é possível e necessário iniciar ações que, se implementadas de forma consistente, poderão ter implicações no longo prazo. Nada disso precisa de decreto.
Por outro lado, como surgiu do vazamento, é importante envolver as famílias, especialmente as dos alunos mais pobres, usuários típicos da escola pública. Duas medidas me pareceriam particularmente relevantes. A primeira seria estimular as famílias a interagir com os filhos e usar a leitura – desde o berço – como instrumento privilegiado para promover essas interações. A existência de uma ampla rede de bibliotecas em todos os bairros do país constituiria um enorme avanço. A segunda é fazer os pais saberem que seus filhos devem estar alfabetizados até o final do 1º ano escolar. Numa sociedade democrática e justa, os pais deveriam dispor de instrumentos para fazer valer esse direito perante a escola pública. Isso, talvez, precise de um decreto.
Fonte: “Veja”, 21/03/2019