A disputa ideológica que transforma em um fla-flu o exercício da política provoca contradições inevitáveis, já que as reações nada têm de lógicas, são emocionais e imediatistas.
De defensor incondicional da Lava-Jato, a partir da investigação envolvendo seu filho Flavio, suspeito de desviar dinheiro dos funcionários de seu gabinete em benefício próprio, Bolsonaro entrou em choque branco com o ministro Sérgio Moro devido a críticas do presidente do Coaf à proibição de investigação sem autorização judicial. Pedido da defesa de Flavio que foi acolhido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Já o choque com o procurador Deltan Dallagnol, que usou o twitter para elogiar as investigações sobre Queiroz, o assessor de Flavio acusado de ser seu operador, foi frontal. O perfil oficial de Bolsonaro no Facebook compartilhou um post chamando o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato de “esquerdista estilo PSOL”.
Ora, como é possível um procurador ser chamado de “esquerdista” por um lado, e acusado pelo outro de algoz do ex-presidente Lula?
Outra contradição: inimigo das ONGs internacionais que atuam na Amazônia, que acusa de estarem a serviço dos interesses de outros países, o presidente Bolsonaro tem planos de abrir a mineração em reservas indígenas a empresas dos Estados Unidos. Disse que essa será uma das principais missões de seu filho Eduardo se assumir a embaixada em Washington, o que parecem favas contadas.
Trata-se, então, de uma preferência pessoal? Empresas norte-americanas podem explorar as terras indígenas, européias não?
Mercosul
Bolsonaro assume posição tão radicalmente favorável ao presidente argentino Mauricio Macri, e contrária a Cristina Kirchner, que vai provocar um prejuízo grande para o Brasil entrando numa disputa com nosso mais importante vizinho politicamente, e parceiro comercial fundamental.
A tendência é a eleição da chapa de Kirchner, e a imagem de Bolsonaro não ajuda, nem melhora a posição de Macri, que não é um radical de direita como o presidente brasileiro. Os eleitorados são diferentes. Bolsonaro afirmou que não quer ‘irmãos argentinos’ fugindo para o Brasil se o resultado se confirmar em outubro.
Mais uma vez Bolsonaro coloca suas preferências pessoais acima dos interesses do Estado brasileiro Há assessores recomendando cautela a partir de agora, porque tudo indica que em outubro a vitória será de Cristina Kirchner. Outros, mais afinados com Bolsonaro, sugerem até a saída do Mercosul.
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Copromancia
O presidente Bolsonaro voltou a falar em excrementos. Primeiro, respondendo a uma pergunta que o incomodou, sobre como conciliar meio ambiente com desenvolvimento, retrucou: “É só você deixar de comer menos um pouquinho […] Você fala para mim em poluição ambiental. É só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida também.”
Ontem, voltou ao tema, sempre ligado ao meio-ambiente: “Há anos um terminal de contêiner no Paraná, se não me engano, não sai do papel porque precisa agora também de um laudo ambiental da Funai. O cara vai lá, se encontrar –já que está na moda– um cocozinho petrificado de um índio, já era. Não pode fazer mais nada ali. Tem que acabar com isso no Brasil.”
Comentando sua primeira resposta, com a sugestão de alternar os dias de fazer cocô, disse que foi resposta a uma “pergunta idiota de um jornalista”. “Respondi que é só você cagar menos que com certeza a questão ambiental vai ser resolvida.” A fala indecorosa do presidente da República, que revela outra de suas obsessões, encontra eco no livro de Rubem Fonseca “Secreções, Excreções e desatinos”, sem a qualidade literária.
No conto intitulado “Cropomancia”, o narrador, que adivinha o futuro analisando as próprias fezes, comenta a certa altura: “Por que Deus, o criador de tudo o que existe no Universo, ao dar existência ao ser humano, ao tirá-lo do Nada, destinou-o a defecar? Teria Deus, ao atribuir-nos essa irrevogável função de transformar em merda tudo o que comemos, revelado sua incapacidade de criar um ser perfeito? Ou sua vontade era essa, fazer-nos assim toscos? Ergo, a merda?”.
Fonte: O Globo, 13/08/2019