Difícil não ser caótico para descrever uma catástrofe.
“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga” (Carlos Drummond de Andrade).
Viajei triste para Brumadinho. Estou cansado de desastres. Conheço até sua lógica: tristeza, indignação, medidas urgentes para acalmar os ânimos e logo depois o esquecimento.
A única forma de suportar o que veria era levar a obra de Drummond na viagem. Ninguém melhor do que ele descreveu as relações das mineradoras com a paisagem e mesmo com as almas. Talvez seja o melhor caminho para entender toda essa história.
Drummond era ao mesmo tempo a testemunha e o profeta. Morreu antes do desastre de Mariana, não viveu a fase trágica que se completa agora com o desastre em Brumadinho. A maneira como descreve Itabira é um desastre em câmera lenta.
Depois de Mariana, passei a seguir o trilho da mineração. Cobri um vazamento de alumínio nos igarapés de Barcarena, no Pará. Em seguida, o rompimento do mineroduto em Santo Antônio do Grama.
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Não foram em barragens, onde se situa o maior perigo, sobretudo a do tipo de Mariana, que deveria ser proibida. Era uma decorrência do desastre. Mas onde estavam governo e Parlamento? Muito próximos da indústria, muito longe das pessoas e da natureza.
Onde estava a Justiça no caso de Mariana? Por que tão lenta? No ano passado, estive lá e nos escombros comentei a decisão de um juiz de suspender o processo contra a Samarco. Chicanas.
Tenho um pouco de escrúpulo em dizer: isto não pode se repetir. As coisas se repetem tanto. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu o cargo com o slogan “Mariana nunca mais’. Agora, a Vale quer prometer Mariana e Brumadinho, nunca mais. É só ir empurrando o nunca mais para o fim e acrescentando alguns nomes antes dele.
Lembra-me dos trens italianos, rapido, molto rapido, rapidissimo.
Acreditamos demais na palavras. O presidente da Vale estava na plateia em Davos quando o presidente Bolsonaro afirmou que o Brasil é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Falava apenas da relação das florestas com agricultura e pecuária.
Isso é um problema antigo com Bolsonaro. Ele teve a ideia de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente. Argumentei que o meio ambiente era mais amplo, crise hídrica, saneamento básico, estendia-se até o licenciamento no pré-sal.
A pressão de todos os lados o fez recuar: manter o Ministério do Meio Ambiente. Mas, ao falar em Davos, de novo ele abstraiu o meio ambiente e o reduziu à questão do campo.
Bolsonaro dizia na campanha que o Ibama é uma indústria de multa. O Ibama não recebeu, por exemplo, nenhum centavo da multa de R$ 250 milhões aplicada à Samarco. É uma indústria completamente falida. Seus devedores não pagam.
Não vou argumentar mais, o desastre fala por si: toneladas de lama, bombeiros rastejando no barro fétido, uma vaca atolada, uma antena de TV flutuando, uma caixa-d’água, o desespero das famílias. A sirene que não tocou, e a lama levou os hóspedes da Nova Estância, a própria pousada foi arrastada. Eles tinham um plano de fuga. E a sirene não tocou. Eram 34, ao que me consta. E mais um bebê na barriga da mãe, mulher de um arquiteto brasileiro que vivia na Austrália e veio conhecer Inhotim. E a sirene não tocou.
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A resposta geral do governo Bolsonaro foi rápida. Vem aí um Plano de Segurança das Barragens. Faltou aparecer o responsável pela Agência Nacional de Mineração. Pode ser que não tenha visto, estava no meio do desastre.
O que mais temo no pós-desastre é o esquecimento. Triste como a música do Piazzolla “Oblivion”. É um país se esquecendo de si próprio. Essa talvez seja a resposta para a pergunta mais adequada. Por que o que não pode se repetir tem se repetido? Esquecimento. Mas, pelo menos, a obra de Drummond lembrará para sempre as origens do drama:
“Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro?”
Nem tudo, entretanto, será esquecimento. Trezentos e quarenta e oito pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias, dos amigos, dos bombeiros de vários pontos do Brasil, dos soldados israelenses, voluntários, repórteres amadores, todos que se aproximaram física ou emocionalmente da tragédia. Carregam na memória o capítulo trágico do testemunho poético de Drummond.
Fonte: “O Globo”, 04/02/2019