Antigamente era mais fácil. Tinha, de um lado, Estados Unidos; de outro, União Soviética. E assim seguia: capitalismo x comunismo; Otan x Pacto de Varsóvia; Ocidente livre x Cortina de Ferro; democracia x ditadura.
Mas havia um desvio, digamos assim, neste último quesito. Considerando-se, no Ocidente, claro, que o comunismo era o inimigo principal, admitia-se que as Forças Armadas assumissem o governo, com ditaduras, para eliminar o inimigo vermelho.
E assim, os Estados Unidos, sob diversos governos, patrocinaram golpes e revoluções pelo mundo afora para, como se dizia, defender o Ocidente livre da sanha comunista. Do lado do Pacto de Varsóvia, que não tinha nenhuma preocupação com isso de democracia e liberdade — o caminho era a ditadura do proletariado —, tratava-se de patrocinar golpes e revoluções para derrubar o capitalismo burguês.
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Tudo ruiu nos anos 80. Para surpresa de muitos, inclusive dos estrategistas dos dois lados, o mundo caminhou na direção da democracia e da economia de mercado. Ditaduras dois lados deram lugar a regimes democráticos, o comunismo soviético praticamente sumiu.
Parecia que as coisas ficariam mais simples, um mundo mais homogêneo. Durou pouco essa percepção.
Ficou mais complicado. Há um cenário bipolar, com Estados Unidos de um lado e China, de outro. Os EUA procurando manter sua hegemonia e a China se movimentando como a potência emergente.
Mas há também um cenário multipolar, no campo da economia e do mercado. No tempo da Guerra Fria, comércio e investimentos ocorriam dentro de cada bloco. O Brasil, por exemplo, de vez em quando conseguia vender café na União Soviética, via Finlândia.
Hoje, pós-globalização, a China tornou-se o principal parceiro do Brasil, lugar que cabia antes aos Estados Unidos. E a própria China tornou-se a maior vendedora no mercado de consumo americano. Na verdade, a China está no mundo todo, comprando, vendendo e investindo.
Por outro lado, todas as grandes empresas ocidentais, incluindo especialmente as americanas, têm negócios na China, ou produzindo lá (a Apple não faz um celular sequer nos EUA) ou vendendo lá.
Isso é bom para o Brasil. Não há mais necessidade de filiar-se a esta ou aquela liderança. Nem se deve. Os Estados Unidos são o nosso segundo parceiro comercial, e há muito espaço para ampliar os negócios. Mas também os EUA concorrem com o Brasil no mercado chinês de soja, por exemplo. Na verdade, Brasil e EUA concorrem em boa parte do mercado mundial de alimentos.
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A China, até aqui pelo menos, não exige que seus fregueses adotem seu regime, que é uma exclusiva combinação de economia de mercado (mais de 60% do PIB do país, e a parte mais dinâmica) com controle do Estado e ditadura do partido único. O governo chinês, cada vez mais confiante, sustenta que seu regime é o mais adequado para o crescimento econômico, sendo isso mais importante que liberdades e direitos individuais. O Estado e o partido sabem mais.
Mas a China não deixa por isso de fazer negócios com típicas democracias de economia de mercado, como essas (quase todas) que estão na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E a maior parte delas não quer se envolver na guerra comercial entre Trump e Xi Jinping.
Ou seja, escolher entre uma economia de mercado mais aberta ou com mais presença do Estado é um problema nosso, dos brasileiros. Abrir (ou não) a economia é uma decisão exclusivamente nossa. Não pode ser para agradar a este ou àquele, mas saber se ajuda ou atrapalha nosso desenvolvimento. Optar por uma ampla democracia também é problema nosso. E mais: não tem ninguém nos ameaçando com nada.
Tudo isso para dizer que alinhamentos automáticos são um enorme equívoco no mundo de hoje.
Nossos problemas estão bem aqui dentro, e o primeiro deles é arrumar as finanças públicas. E depois, acho, facilitar a vida dos que querem fazer negócios honestamente no país. E, depois de tudo, tem uma coisa que todo mundo sabe, inclusive os chineses, embora não digam: o capitalismo, o empreendedor privado, é melhor caminho para gerar riquezas.
Fonte: “O Globo”, 21/03/2019