Os contrastes, os anacronismos, são parte inseparável de Cuba. As sombras e as luzes compõem essa realidade que entrou aos tropeços no século 21. Um poeta definiu a insularidade com uma frase que pode ser confirmada a cada passo: “A maldita circunstância da água por todos os lados”. É isso mesmo: mar, mar e mar, por todos os lados.
Não só as águas azuis onde as crianças mergulham, mas também um mar de nostalgias, isolamentos, sonhos e balseros. Um país difícil de decifrar, até para os que nasceram nele. Aqui, tudo anda mais devagar, como se a vida fosse mostrada em câmara lenta. O efeito que as velharias provocam é reforçado pelos casarões para os quais ainda não chegou a hora de dar lugar a arranha-céus. Joias arquitetônicas com colunas rachadas pelos anos e pela falta de recursos. Pisos de mosaicos e arabescos, os abajures com lágrimas de cristal conservados pela avó. O esplendor ao lado da necessidade.
Longe do centro histórico, com seus hotéis e opulentos restaurantes, estende-se a verdadeira Havana. A qualquer hora, surpreende a quantidade de gente pelas ruas. Estamos diante de uma cidade pedestre, em parte porque durante décadas a compra e venda de carros foi proibida. Por isso, o cubano está acostumado a andar ou a esperar horas a fio pelo ônibus. Isto reforça a impressão de imobilismo.
A espera é um dos elementos inerentes à identidade da ilha. Uma piada popular garante que o “ioga deve ter sido inventado em Cuba”, dada a paciência das pessoas nas enormes filas e com os prolongados governos. Mas, na hora da diversão e do baile, é como se o ponteiro dos minutos andasse mais rápido, saltando. Hoje, Havana conserva algo desse glamour notâmbulo que a tornou famosa como “a Babilônia do Caribe” na primeira metade do século 20.
A dualidade monetária – entre o peso cubano e o conversível – determina o tipo de diversão à qual se pode ter acesso. Os mais pobres fazem suas bebidas em casa, com álcool barato, um pouco de açúcar e limão. Mas, de uns anos para cá, também proliferam os bons restaurantes, conhecidos como paladares. A cozinha crioula mistura-se com a internacional nesses lugares que prosperaram graças às flexibilizações econômicas dos últimos anos.
Os turistas são seus principais clientes, mas também os cubanos no exílio ou a emergente classe empresarial. Perto da meia-noite, pode até aparecer algum figurão do governo que trocou o verde-oliva por um traje à paisana. Entretanto, a magia principal não está no presente. Curiosamente, as duas atrações principais ainda são o passado e o futuro.
O que foi, com seus carros antigos e o orgulho de ter uma cidade que compartilhava astros em cartaz com Paris, Nova York e Buenos Aires. Apesar disso, uma força contrária o obriga a olhar para o que virá. Porque Cuba é um país com potencial oculto.
Aqui, o absurdo está em toda parte. Desde a especialista em estomatologia que come uma pizza enquanto atende o paciente com dor de dente até o trâmite complicado para excluir o defunto da lista do mercado de produtos racionados. Inexplicável cotidianidade, mas também cativante. A unidade habitacional principal do cubano está nos edifícios conhecidos como solares, antigas mansões que o tempo e as dificuldades econômicas foram dividindo e povoando com múltiplas famílias. O pátio central, o banheiro coletivo, o terraço onde os adolescentes criam pombas, as roupas de cor indecifrável penduradas nos varais. O dominó, a solidariedade das pessoas e uma mãe que berra o nome do filho da sacada: “Yunisleidy!”
Uma semana não é suficiente, um hotel não é suficiente, um olhar da janela do ônibus climatizado também não. Cuba deve ser vivida em suas ruas para se compreender suas contradições. Como o mercado ilegal de material de construção que floresce a poucos metros da Praça da Revolução.
Porque Cuba é uma ilha com anseios de continente, ávida por ser mais, por ir mais depressa, por chegar mais longe. Um país adolescente no qual cresceram braços e pernas, mas dentro de uma roupa apertada demais. Visitar sua realidade não deixa ninguém indiferente. Como um postal sépia. Em lugar de emoldurá-lo, somos obrigados a entrar nele, para viver sua realidade, sofrê-la e amá-la.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/11/2013
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