Instituições fiscais são de difícil construção. Mas, mostra a nossa história, de fácil desconstrução. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que neste ano completou exatos 20 anos, foi um dos grandes avanços institucionais que o Brasil viveu. Era um momento de grandes reformas e grandes conquistas, a maior delas a estabilidade monetária. O pilar fiscal era parte da consolidação dessa conquista. A LRF foi a sua tradução.
A elaboração do projeto de lei complementar veio na esteira da renegociação de dívidas de Estados e municípios pela União. Quebrados após anos de irresponsabilidade fiscal, com crescimento descontrolado do endividamento subnacional, o seu maior objetivo era o de aperfeiçoar a gestão fiscal do País nos três níveis da Federação. Além disso, o projeto de lei resgatava conceitos básicos da gestão orçamentária, como planejamento, transparência e equilíbrio das contas públicas, definindo diretrizes de execução fiscal e delimitando competências e responsabilidades dos agentes públicos.
Há nela o lado da receita, forçando a previsibilidade e o monitoramento da arrecadação própria e de transferências e a compatibilização com o arcabouço orçamentário público já constituído, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei do Orçamento Anual (LOA).
Há também os limites e critérios de endividamento, com uma clara conexão com os anos de descontrole dos subnacionais, amarrando Estados e municípios numa camisa de força que funcionou pelos dez anos subsequentes – até o governo Dilma sorrateiramente ir desatando os fechos, abrindo brechas nos critérios e limites, o que se traduziu no colapso de vários Estados como, por exemplo, o Rio de Janeiro. Houve aí uma primeira grande desconstrução, que deu origem a várias outras que a equipe do governo Temer tentou (e em boa parte conseguiu) reconstruir.
Mas é no lado da despesa pública, consequência de décadas de descontrole, que a LRF mais se detém. Com o objetivo de conter o aumento constante do gasto público, a LRF determina limites e define conceitos com o objetivo de garantir o equilíbrio fiscal e, consequentemente, a boa gestão pública. Há conceitos gerais, como a condicionante de apontamento de fonte de financiamento para a criação de nova despesa, e há limites objetivos, como aqueles relacionados à despesa de pessoal ou aos serviços de dívida (pagamento de juros e amortizações) em relação à receita corrente.
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Mas é na dimensão das despesas de pessoal que a LRF se viu lenta e continuamente desconstruída ao longo dos anos. A lei define limites de comprometimento da receita corrente líquida com despesas de pessoal de 50%, 60% e 60% para a União, Estados e municípios, respectivamente. As sanções pelo descumprimento desse limite abrangem desde o impedimento de contratação, proibição de criação de novos cargos ou pagamento de horas extras para funcionários, até a interrupção de recebimento de transferências intergovernamentais. Além dessas sanções, os chefes do Executivo que não cumprirem os limites da lei respondem por crime de responsabilidade fiscal e podem ficar inelegíveis. Medidas de correção devem ser tomadas para retornar aos limites em até dois quadrimestres após o descumprimento. Os instrumentos para isso são a demissão dos servidores comissionados e, sequencialmente, daqueles estáveis contratados a menos tempo. A redução de jornada de trabalho com proporcional redução de salários é também uma saída prevista a LRF. Certamente menos traumática que as anteriores, mas suspensa por liminar aguardando o julgamento que finalmente ocorreu. Infelizmente.
Na decisão da semana passada, o STF decidiu pela inconstitucionalidade de dois dispositivos da LRF e feriu de morte os conceitos de justiça social e de controle de gastos. Além de eliminar a possibilidade de uso da redução de jornada como forma de cortar despesas de pessoal, o STF também proibiu a redução dos orçamentos dos Poderes autônomos em caso de frustração de receita.
Na prática, as decisões da Suprema Corte conseguiram não só desconstruir – agora formalmente – a LRF, mas também o feito de aprofundar ainda mais nossa desigualdade social, consagrando a divisão do Brasil em castas. Há a casta de servidores públicos, que têm seus salários protegidos da crise econômica, enquanto a maioria agoniza. Mas há ainda, dentro dessa casta, um subconjunto mais protegido contra intempéries e mazelas econômicas e sociais do Brasil, que são os servidores dos Poderes autônomos.
As duas decisões são cruéis e injustas, em particular neste momento. Blindam-se alguns em detrimento de tantos e mantém-se Judiciário, Legislativo e Ministério Público com seus orçamentos – e consequentes penduricalhos – intactos. Ao Executivo cabe agonizar e cortar na carne gastos que atingem orçamentos prioritários, como os de educação e de segurança pública.
Zelar pela Constituição – missão primeira e imprescindível do STF – também significa zelar pela justiça social e pela equidade. Ao desconstruir a LRF, os ministros preteriram essa importante missão em favor do corporativismo.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 30/6/2020