Há alguns anos, ainda como secretária de Fazenda do Estado de Goiás, ouvi de um empresário uma afirmação que vale repetir aqui. No meio de uma reunião em que se discutia o custo Brasil, o aumento da carga tributária ao longo dos anos e as dificuldades fiscais dos Estados, ele me olhou e disse: ‘Secretária, nossa carga tributária é de fato elevada, mas quem me dera se os tributos no Brasil só me custassem a carga tributária. Eles me custam muito mais do que isso’.
Essa afirmação diz muito sobre a esquizofrenia tributária que vivemos no Brasil e sobre as dificuldades e ineficiências de um sistema complexo e disfuncional. Uma infinidade de regras e normas dão conta de tributos e contribuições que se sobrepõem e que se entrelaçam com alíquotas distintas, numa miríade de regimes especiais, isenções setoriais e incentivos fiscais regionais. O resultado, além das distorções alocativas e da regressividade conhecidas, é um enorme contencioso tributário, que corre em instâncias administrativas e judiciais Brasil afora. Isso significa incorrer em custos para reduzir o custo das regras, mas também mais custo para conseguir cumpri-las e depois muito mais custo em caso de descumprimento (ou suspeita), seja ele proposital ou não, devido ou não.
Além disso, um sistema complexo e oneroso como o nosso tem outros desdobramentos, sendo o mais perverso deles a possibilidade de alguns – aqueles com maior poder de pressão – obterem um tratamento diferenciado. Afinal, a carga elevada, o número crescente de impostos e contribuições e a dificuldade em se manter em conformidade com tantas regras, são argumentos legítimos para se defender uma exceção, via isenção ou a redução de carga tributária. Os motivos são sempre nobres: proteção dos empregos, desenvolvimento de um determinado setor, o exercício de uma função social relevante, etc.
Mas o Brasil de hoje vive de exceções, não de regras. Todos querem ser diferentes perante a lei, ignorando que i) alguém vai pagar por isso; ii) um tratamento fiscal diferenciado só se justifica mediante uma rigorosa avaliação de impacto que comprove sua adequação (econômica e social), dê transparência à origem de recursos que vão financiá-lo e demonstre as especificidades e diferenças que justificam um tratamento distinto frente a outros potenciais beneficiários. Afinal, leis e normas são feitas para todos e as exceções devem ser claramente documentadas, explicadas e as contrapartidas para a coletividade – principalmente nos custos – precisam ser divulgadas.
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Pois o ano mal começou e já temos de lidar com a defesa de mais uma exceção. Trata-se da ampliação de privilégios para templos religiosos, já amplamente beneficiados por isenções fiscais. Desde a Constituição de 1988, a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios são proibidos de instituir impostos sobre templos de qualquer culto. Ou seja, já gozam de imunidade tributária graças a uma previsão constitucional que proíbe a cobrança de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), Imposto de Renda sobre o que arrecadam em dízimo, IPVA (Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores) sobre os veículos que possuem e ISS (Imposto Sobre Serviços). Nos casos de isenção, é necessário que haja aprovação de lei complementar. Foi o caso do PLP 55/2019, aprovado em dezembro do ano passado pelo Senado Federal, autorizando os Estados a isentarem templos religiosos e entidades beneficentes de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) até 2032.
A ampliação das benesses, apoiada pelo presidente que tem nos evangélicos uma das suas principais bases de apoio, viria agora por meio de subsídios nas contas de luz dos templos religiosos de grande porte. Não surpreende o pleito que, como vimos acima, se tornou uma prática comum nos últimos anos. O que surpreende é que os que o defendem não se sintam constrangidos ao fazê-lo. Repassar para a população mais um pedaço da conta daqueles que já são privilegiados, é pedir mais uma parcela de sacrifício a quem já vem pagando muita conta que não é sua.
Além disso, aprofundam-se as distorções em um setor que deveria estar na direção contrária, diminuindo os subsídios que hoje chegam à casa dos muitos bilhões e que tornam a conta dos simples mortais muito mais cara do que deveria ser. Mas, à esta altura, com partes do governo e do Congresso defendendo mais uma vez o indefensável, só o que nos cabe é gritar e, para os que creem, orar (sem subsídios adicionais) para que a racionalidade impere sobre o clientelismo.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 14/1/2020