Um dos autores do Plano Real, o economista André Lara Resende afirma em entrevista por email que a política de juros hoje segue uma “regra de bolso, sem fundamentos teóricos sólidos”. A possibilidade de que a “ortodoxia monetária atual” esteja equivocada é tema de seu livro “Juros, moeda e ortodoxia” (Portfolio Penguin), que será lançado dia 23. Para André Lara, os juros podem estar contribuindo para o desequilíbrio fiscal no Brasil e, assim, sendo contraprodutivos.
O debate levantado por seus artigos sobre a eficácia dos juros altos para combater a inflação teve forte repercussão no Brasil. O uso dos juros virou um dogma no Brasil?
Dogma não. No Brasil, assim como em toda parte, a política monetária segue os cânones da teoria monetária dominante. Hoje, a política monetária é conduzida através de metas para a inflação e de uma regra para a fixação da taxa básica de juros. Esta regra determina que a taxa de juros seja reajustada mais do que proporcionalmente à aceleração ou à desaceleração da inflação. É uma regra de bolso, sem fundamentos teóricos sólidos, que, até recentemente, parecia ter funcionado para estabilizar a inflação. Ocorre que, com a taxa de juros perto de zero nos países avançados, o que obrigou os bancos centrais a parar de reduzir os juros, a inflação não continuou a cair como previa a ortodoxia, mas se estabilizou perto da taxa de juros zero. A atual ortodoxia passou então a ser questionada.
O Brasil ficou viciado em taxas de juros altas?
O verdadeiro vício brasileiro é a dependência excessiva do Estado, a insistência em receber de um Estado, patrimonialista e ineficiente, mais do que ele é capaz de extrair da sociedade por meio dos impostos. O resultado é um estado mais endividado do que o razoável, o que levanta dúvidas sobre a sua solvência a longo prazo e pressiona a taxa de juros.
Muitos justificam os juros no Brasil pela indexação ainda presente e pela memória de décadas de hiperinflação. É por isso que temos taxas que estão entre as mais altas do mundo?
As políticas monetária e fiscal sempre foram muito mais interdependentes do que se pretende. De uns anos para cá, sobretudo depois da crise de 2007/2008 nos países avançados, com o advento do chamado quantitative easing, ou o “afrouxamento quantitativo”, no qual os bancos centrais expandiram a liquidez para evitar o colapso dos mercados financeiros, os balanços dos bancos centrais ficaram tão grandes que passaram a afetar inevitavelmente a política fiscal. No Brasil, onde a dívida pública em relação ao PIB (tamanho da geração de riquezas pelo país ao longo de um ano) é alta e continua a crescer, a taxa de juros também tem um impacto fiscal importante. O impacto fiscal da política monetária não pode mais ser desconsiderado. Políticas monetária e fiscal devem ser coordenadas.
Estamos condenados a ter taxas de inflação altas a longo prazo? Como poderemos ter juros e inflação mais baixos?
Não estamos condenados a ter juros altos, mas é preciso garantir o equilíbrio de longo prazo das contas públicas para que os juros possam cair. O ponto polêmico dos meus últimos artigos sobre o tema é a possibilidade de que a política monetária, com os juros altos, possa estar contribuindo significativamente para o desequilíbrio fiscal e assim ter se tornado contraprodutiva. A chave está no restabelecimento do equilíbrio fiscal de longo prazo.
Estamos em recessão há dois anos e com 14 milhões de desempregados. O quanto os juros altos são culpados?
Taxas de juros altas durante a mais grave recessão já registrada e desemprego de quase 14% da força de trabalho são algo muito difícil de se explicar. As altas taxas de juros no Brasil, desde a estabilização com o Plano Real, são motivo de perplexidade e controvérsia entre os analistas. A possibilidade de que a ortodoxia monetária atual possa estar equivocada é o tema do meu livro.
O Banco Central reduziu o ritmo de corte de juros, diante da crise política. Agiu certo?
O Banco Central tem sido coerente com sua cartilha e o com seu modelo de análise da economia.
Quais tipos de danos a insistência em aplicar a nova ortodoxia nas últimas duas décadas pode ter causado ao país?
No meu livro, sustento que o liberalismo ilustrado de Eugênio Gudin, em contraponto ao nacional-desenvolvimentismo de Roberto Simonsen, apesar de intelectualmente vitorioso na controvérsia entre eles nos anos 1940, foi derrotado nos corações e nas mentes dos brasileiros. Atribuo esta derrota política à equivocada ortodoxia monetária pela qual Gudin e seus discípulos sempre se pautaram. Sempre corretamente preocupados em derrotar a inflação, quando no comando da economia, promoviam um aperto de liquidez cujo resultado era uma ameaça de crise bancária, sem qualquer ganho consistente em relação à inflação. Os custos políticos da velha ortodoxia monetária foram altos: tudo que o liberalismo ilustrado tinha e tem de certo ficou comprometido, deu espaço para a predominância do nacional-desenvolvimentismo estatizante, que até hoje pauta o imaginário político brasileiro.
No governo Dilma, tentou-se reduzir os juros usando os bancos públicos. A inflação subiu. O que deu errado?
O uso do crédito subsidiado dos bancos públicos agrava o desequilíbrio das contas públicas. Este foi um dos fatores que contribuíram de forma significativa para o desastre que se abateu sobre o país. A chamada teoria fiscal do nível de preços, que discuto no meu livro, vê no desequilíbrio fiscal a causa última da inflação. Crédito subsidiado aumenta o déficit público e acelera a inflação.
Qual é o caminho para manter a inflação controlada?
Controle das contas públicas de forma a garantir o seu equilíbrio a longo prazo. Entretanto, com a economia em recessão, a tentativa de equilibrar as contas públicas a curto prazo pode ser contraproducente. Pode vir a agravar a recessão, reduzir a arrecadação e aprofundar o déficit. Não existem fórmulas mágicas, nem receitas universais. A política econômica exige sempre reflexão crítica e adaptação às circunstâncias.
Temos as duas coisas, juros altos e déficits altos. Qual é a saída?
Não existe uma cartilha a ser seguida, uma solução clara, inequívoca. As pessoas precisam refletir, e tem contradições, como tudo na vida, tem coisa negativa de um lado, positiva por outro. Eu não estou dizendo que estão fazendo tudo errado e eu sei como fazer a coisa certa. Estou refletindo ao contrário, as coisas são difíceis e é preciso refletir, tomar decisões que implicam julgamento de valor, julgamento político. Esse é ponto fundamental, a economia não é uma técnica. Essa é a mensagem que eu quero dar.
Fonte: “O Globo”, 18/06/2017.
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