O Brasil registrou um novo recorde, com consequências danosas para o bem-estar do País. Trata-se da marca de 61,2 milhões de cidadãos e de 5,4 milhões de empresas com anotações de atrasos de pagamentos. É a pior nota de saúde financeira na história do País.
A inclusão dos nomes nos birôs faz com que todos esses indivíduos e firmas tenham reduzida sua capacidade de obter créditos comerciais e bancários. Consequentemente, isso limita o potencial de cada um deles de comprar, produzir e empregar.
Para as empresas, o crédito é um substituto quase perfeito do capital próprio com externalidades. Assim são conhecidas as consequências econômicas que afetam terceiros que não as causaram. Elas podem ser negativas, como a poluição, ou positivas, como o reflorestamento de uma área. Em linguagem popular, uma externalidade no setor financeiro é conhecida como efeito dominó. Pode ser benéfica, causada por uma injeção de crédito bancário a taxas competitivas, aumentando o potencial produtivo das empresas e expandindo o financiamento comercial a clientes, com impactos que se propagam pela economia, gerando empregos, expandindo investimentos e valorizando ativos reais.
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Um encolhimento dos financiamentos tem o efeito oposto. Pode ser repentino, como o ocorrido nos EUA em 2008, com externalidades negativas no mundo inteiro. E pode ser lento, como o que está acontecendo no Brasil desde 2010, em que o crédito se tornou um dreno para o setor não financeiro.
A intermediação financeira tem externalidades fortes. Os países de renda média alta – grupo em que está incluído o Brasil – têm em média uma relação crédito/PIB de 115,5%. Em outra situação, no grupo de renda baixa o valor é de 21,2%, cinco vezes menor. Esses dois números mostram a importância de uma oferta de financiamentos para aumentar a renda.
A relação no Brasil, divulgada pelo Banco Central (BC) no mês passado, é de 46,6%, menos da metade de seu potencial. As consequências disso são desemprego alto, crescimento anêmico e desvalorização de ativos reais. A questão é encontrar as causas e determinar o que pode ser feito.
Duas explicações são recorrentes. A mais comum é a falta de educação financeira. Não é razoável estimar que mais da metade dos gerentes financeiros das empresas do Brasil e de um terço dos adultos tenham desconhecimento financeiro tão grande para fazer a inadimplência alcançar o patamar atual. Não é, mas, se fosse, a prescrição de política econômica seria exigir mais responsabilização do emprestador.
Outra explicação é atribuir a culpa à queda do PIB. É fato que a mora em dívidas aumentou de 2014 em diante. Mas também é fato que todos os indicadores de inadimplência aumentaram mais de 60% nos quatro anos antecedentes a 2014, quando o PIB subiu 17%. Portanto, o início da alta da morosidade é anterior e se agravou depois.
A causa da alta inadimplência é a anomia do crédito. O termo descreve a ausência ou o descumprimento de normas onde algo não funciona de modo harmônico, mas sim de forma patológica ou “anomicamente”. Note-se que no Brasil há milhares de regras, leis e artigos da Constituição que afetam o crédito. No último ano, o Banco Central do Brasil expediu centenas delas, todavia há falhas essenciais.
Uma tem que ver com o princípio constitucional da transparência, que é uma das bases da livre iniciativa. As informações sobre operações de crédito são opacas, confusas e prolixas. Misturam-se taxas mensais com anuais, dias corridos com dias úteis e omitem-se dados nos juros cobrados. Os critérios de precificação são desconhecidos. Enfim, entender os valores cobrados é complexo.
A nota à imprensa do crédito do Banco Central ilustra este ponto. Nos cálculos da taxa média incluem-se os pagamentos à vista – o que baixa o valor dos juros e da inadimplência do sistema –, e não se inclui o IOF, um item importante no custo do crédito. São apresentadas duas medidas de taxas de juros totais, mas não se inclui a das concessões, que é a mais importante, reflete na margem a dinâmica do crédito e tem um valor três vezes mais alto. E por aí vai.
Outro princípio da livre iniciativa que não é seguido é o da livre escolha. Pior, é agravado. Explico: o custo das linhas de cheque especial para empresas é em média 15 vezes maior do que o das de capital de giro, todavia há mais concessões para este crédito mais caro. Na pessoa física ocorre algo semelhante. A opção da escolha não aparece para a maioria dos clientes e é uma das causas da inadimplência.
Um caso frequente ocorre quando um correntista de um financiamento que tem um aperto de liquidez momentâneo, em vez de ter a possibilidade de um alongamento desse financiamento, tem simultaneamente uma linha mais cara e mais curta. O resultado para o emprestador é mais lucro no curto prazo, mas para o tomador e seus relacionamentos é desastroso.
Note-se que um empresário, quando toma uma linha no cheque especial, não está comparando a taxa de retorno do crédito com a do seu empreendimento. Ele está apenas comprando tempo. Não há atividade lícita que renda 300% ao ano.
Um princípio na teoria econômica é corrigir as distorções das externalidades com tributação. No Brasil, elas são agravadas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que juros bancários são abusivos quando superam muito a taxa de mercado; o Banco Central divulga uma taxa média do sistema de 25%; e há várias instituições que cobram mais de 500% ao ano.
O ponto é que há normas que são desacatadas. A questão é o que fazer. A proposta deste artigo é acabar com a anomia corrigindo as distorções acima e outras, como diluição de dívidas, fragmentação de relacionamentos, a indexação, a renegociação e a responsabilização.
É fato, a condução do Banco Central tem muitos méritos. Mas também é fato que nos dois últimos anos o crédito encolheu e a inadimplência se agravou. Isso, no entanto, pode ser revertido. As condições são boas e cinco meses é tempo de sobra.
Fonte: “Estadão”, 22/07/2018