“A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça.” (Ruy Barbosa}
Relata Nelson Werneck Sodré, em sua “História da Imprensa no Brasil”, as aventuras de Cipriano Barata (1764-1838), jornalista baiano e um dos artífices da independência brasileira. Barata, um republicano vigoroso e constituinte de 1824, combateu, por meio das páginas de seu jornal “Sentinela da Liberdade”, a escalada despótica do primeiro imperador bragantino. Mesmo preso incontáveis vezes, o velho jornalista continuou a editar a incômoda tribuna, acrescentando, a seu título, cada um dos locais onde se encontrava encarcerado. Surgiam, assim, denominações curiosas, como “Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Atacada e Presa na Fortaleza do Brum por Ordem da Força Armada Reunida” (1822) ou “Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel-General de Pirajá Mandada Despoticamente para o Rio de Janeiro e de lá para o Forte do Mar da Bahia Donde Generosamente Brada Alerta!” (1833), numa sequência de mais de dez títulos, todos a testemunhar que, mesmo nos calabouços para onde era lançado, mantinha Barata uma inabalável fé na liberdade de expressão, como valor indissociável das virtudes que a Revolução Francesa há muito lhe inspirava.
Qual a semelhança possível entre o Brasil rural, escravocrata e autoritário daquele Primeiro Reinado com o país que almeja, em nossos tempos, os primeiros postos na ordem internacional? Se é verdade que a sociedade civil tem imposto notáveis avanços, tais como a promulgação da Constituição Federal de 1988, o impeachment de um presidente corrupto e o estrangulamento do processo inflacionário, a partir do Plano Real, só para se mencionar as últimas décadas, também o é que o País ainda carece de mecanismos institucionais que defendam os valores primordiais do Estado de Direito – e não privilégios e regalias, somente encontrados nas velhas capitanias hereditárias do Brasil Colônia e em Estados desgraçadamente governados (encilhados?) por essa fração de estamento em nossa nem tão Nova República.
Uma digressão talvez longa, mas certamente necessária, para lembrar os males que ainda atingem em cheio a cidadania brasileira, ferida em seu direito mais comezinho, o da informação, a partir da censura imposta pelo Judiciário ao jornal “O Estado de S. Paulo”. Embora não seja o único a sofrer com a censura prévia – outros 20 periódicos no Brasil encontram-se em similar estado –, o diário da família Mesquita certamente simboliza, em mais de uma centena de dias sob tutela judicial, a ameaça de uma escalada autoritária a macular um dos pilares do Estado democrático de Direito: o direito à liberdade de imprensa, protegido pela Constituição de 1988 e abrigado por todas as convenções no campo dos Direitos Humanos das quais, aliás, o Brasil é signatário, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de São José da Costa Rica. Todos a proclamar o direito fundamental à liberdade de pensamento e de expressão.
Além dos acordos internacionais, cabe lembrar o valor da Declaração de Chapultepec, carta de princípios decorrente da conferência hemisférica sobre liberdade de expressão, realizada no México, em 1994. Dois anos depois, seus princípios seriam chancelados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e renovados, em 2006, pelo atual mandatário. Segundo esse documento, a imprensa livre é “condição fundamental para que as sociedades resolvam os seus conflitos, promovam o bem-estar e protejam a sua liberdade”. E prossegue: “não deve existir nenhuma lei ou ato de poder que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa, seja qual for o meio de comunicação”. Aludindo que o exercício da liberdade de expressão e de imprensa não advém de qualquer beneplácito das autoridades, a declaração define que “a censura prévia, as restrições à circulação dos meios ou à divulgação de suas mensagens, a imposição arbitrária de informação, a criação de obstáculos ao livre fluxo informativo e as limitações ao livre exercício e movimentação dos jornalistas se opõem diretamente à liberdade de imprensa”.
Diante desses elementos, causa séria preocupação a decisão proferida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 10 de dezembro passado, mantendo a censura prévia imposta ao “Estado”. Trata-se de restrição originária da deliberação do desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que concedeu liminar a habeas corpus interposto pelo empreendedor Fernando Sarney. Filho de um senador pelo Estado do Amapá, Fernando reagiu ante a divulgação de fatos ligados à Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que o investigava. Como se apurou posteriormente, Vieira era amigo íntimo de José Sarney, para quem trabalhou, em tempos idos, na Gráfica do Senado. Estranhamente, ao analisar recurso contra essa sentença, o plenário manteve o julgamento, reconhecendo, concomitantemente, a suspeição do compadre de Sarney. Não satisfeita, a Corte remeteu a ação para a Justiça Federal do Maranhão, Estado-habitat do clã Ribamar. Contra essa decisão insurgiu-se a reclamação do “Estado”, interposta no STF e indeferida em plenário sem que fosse propriamente deliberado o mérito da causa.
Ainda que não tenha julgado a questão em caráter terminativo, quais serão os aspectos mais graves da manutenção da censura prévia pelo STF? Trata-se, primordialmente, de uma ofensa que transcende a mera pessoa jurídica do jornal. Como se sabe, além do “Estado”, muitos outros jornais brasileiros, em sua maioria veículos locais, encontram-se censurados pela Justiça; alguns até encerraram suas atividades diante da imposição de indenizações desproporcionais à capacidade econômica de empresas jornalísticas eminentemente pequenas. A decisão do Supremo, por essa razão, constitui um sinal desanimador sobre o cumprimento da própria Constituição Federal, violando a essência da liberdade de expressão, base de todo regime que se postule democrático. A maioria dos ministros presentes à sessão ratificou, engenhosamente, um obscuro direito subjetivo de tutela (ou seja, censura) sobre o conteúdo futuro (isto é, prévio) do órgão de comunicação. A isso se denomina censura prévia, não importa o nome edulcorado que se lhe dê. Lastimável, em todos os seus aspectos, a criativa novilíngua formulada por um dos ministros da Corte que, em pretéritos tempos de titularidade universitária, vociferava contra “O Estado de S. Paulo” e os “reacionários Mesquita”. Pois essa figura de claudicantes ideias afirmou, categoricamente, em emblemático voto: “O juiz está limitado pela lei. O censor não está limitado por lei alguma. Aí não há censura. Há aplicação da lei. Aqui não estamos falando em censura. Estamos falando na aplicação da Constituição pelo Poder Judiciário”. Engana-se o ministro: a aplicação da sentença por qualquer magistrado, ao arrepio da Constituição, configura atividade censória. Muda-se o agente: não mais o censor do velho Departamento de Ordem Política e Social, mas o juiz togado. A restrição à liberdade de imprensa persiste; e o veto à liberdade de expressão, em inequívoco arrepio à Lei, possui um único nome: censura.
Numa segunda vertente, destaca-se um inquietante fenômeno: o mais absoluto estado de apatia da sociedade civil. Não bastasse a já conhecida hipertrofia do Executivo, potencializada por um temor reverencial que impede o regular exercício da crítica, valor inerente a todo regime democrático, assiste-se a uma dissolução lenta e, muitas vezes, intangível no dia-a-dia político, das instituições democráticas delineadas a partir da Nova República. Uma opinião pública ausente, partidos políticos débeis que em nada diferem uns dos outros – inclusive em generalizadas práticas de rapinagem do Estado –, e a contumaz indiferença da maioria da população, todos, combinados, preparam fértil terreno para um apagão democrático. Um estado geral de negligência em face da República, que se instala insidiosamente e mina as defesas do organismo político brasileiro, o qual, somente em nossos tempos, libertou-se da longa tutela militar sobre a coisa pública. O autoritarismo, sem embargo, permanece, sob nova roupagem, como para confirmar a marca imanente e indelével de nossa formação nacional. Despotismo que se traduz na crença de que ao Estado cabe a permanente tutela dos súditos. Como desdobramento, qualquer exercício de crítica política constitui crime de lesa-pátria por confrontar-se ao “projeto nacional” – mesmo que o projeto de partido (ou da liderança carismática de plantão) subordine a Nação a seus nebulosos ditames.
O apagão democrático irradia-se por um Judiciário censor, que perdeu a oportunidade de reafirmar o primado da Constituição; estende-se por um Legislativo inoperante e que se encontra, há décadas, incapaz de levar adiante uma agenda própria. Some-se a este quadro o desalentador e, certamente, pouco republicano silêncio dos intelectuais e estará montado o cenário propício para cerceamentos mais sutis, judicialmente legitimados e ignorados por uma sociedade idiótica, no sentido grego de designar a aversão do habitante da pólis aos negócios de Estado.
Em feliz manifestação, o voto derrotado do ministro Celso de Mello, decano do STF, demonstra a necessária sensibilidade para compreender o papel do Judiciário num Estado democrático de Direito. Mello aponta, inconformado, ser “particularmente grave e profundamente preocupante que ainda remanesçam, sim, no aparelho do Estado, determinadas visões autoritárias que buscam justificar, pelo exercício arbitrário do poder geral de cautela, a prática da censura”. E exemplarmente conclui: “A censura traduz a ideia mesma da perversão das instituições democráticas, em um regime onde a liberdade deve prevalecer. (…) O cidadão tem a prerrogativa de receber informações sem qualquer obstrução, sem qualquer interferência por qualquer órgão de poder público, seja do Poder Executivo, seja do Poder Legislativo, seja do Poder Judiciário”.
À sociedade civil cabe manifestar o repúdio por todas as formas de censura. Afinal de contas, a democracia, parafraseando Renan, é um plebiscito diário. A responsabilidade pela sua manutenção pertence à cidadania e a todos aqueles que se dispuserem a enfrentar o pensamento único, as teias do mando oligárquico e as forças da Contrarreforma que, associados, ameaçam furtivamente a transformação do Brasil numa nação moderna. Procurar honrar o legado ético de Cipriano Barata e converter a luta pela liberdade de imprensa numa sentinela permanente contra o arbítrio e a prepotência daqueles que se julgam donos do País – eis o verdadeiro imperativo categórico de nosso “tempo de tormenta e vento esquivo” (Camões, Os Lusíadas, V, 18).
N. do A.: Logo após a conclusão deste artigo, o empresário Fernando Sarney anunciou a desistência da ação que movia contra o “Estado”. A decisão, fruto de uma calculada estratégia de mitigação dos danos à imagem do clã maranhense, em nada muda o mal-estar deflagrado pelo assalto autoritário àquele jornal, assim como o infeliz papel desempenhado pelo Judiciário no episódio. A liberdade de imprensa continua ameaçada no Brasil.
Roberto Salone, diplomata de carreira, é autor do livro “Irredutivelmente liberal: política e cultura na trajetória de Júlio de Mesquita Filho”, Albatroz Editora.
O presente artigo, de caráter exclusivamente pessoal, não reflete necessariamente a visão do Ministério das Relações Exteriores.
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