Testemunhei uma experiência humana raríssima: presenciei a introdução de aparelhos comuns e rotineiros numa outra cultura.
Assisti, nos anos 60, como a espingarda, o machado de aço, o terçado, a lanterna elétrica, a injeção, o chocolate, o papel, o sabão, o aparelho de barba, o relógio de pulso e o rádio foram vistos por povos ditos primitivos exatamente porque eles não conheciam tais objetos.
Ou aparelhos. Vale usar o termo porque cada um desses itens mencionados acima promove um “aparelhamento” no sentido de que eles inventam seus próprios espaços e, acima de tudo, seus parceiros, seus laços e suas dependências.
Numa outra crônica, falei sobre a minha descoberta do rádio entre os gaviões do Médio Rio Tocantins quando eu aprendi que tal aparelho nos treina somente para a passividade do ouvir e não para a atividade do falar. De fato, quando os meus anfitriões se viram diante de um pequeno rádio Sharp, eles demandaram repetições das músicas que gostavam o que me fez descobrir que rádios falam mas não ouvem! Ou seja, são aparelhos no sentido pleno da palavra. Estão aparelhados somente para transmitir. Uma coisa sempre leva a outra, mas os aparelhos nos fazem ignorar o outro lado.
Uns oito ou nove anos depois, agora diante de um poderoso rádio Zenith dotado de 11 faixas, um professor da etnia apinayé cuja sabedoria tinha o tamanho de sua idade, o velho Zezinho Matuk me perguntou entre uma notícia e outra da “Voz do Brasil”:
— Como é que ele fala?
E eu descobri que não sabia explicar. Falei em ondas hertzianas e no impulso eletromagnético, mas o velho voltava a questão inicial:
— Tudo bem, mas como é que ele fala?
É obvio que ele perguntava sobre o fenômeno extraordinário de estar diante de uma caixa falante. De uma voz sem boca e corpo, algo inusitado em qualquer lugar.
Anos depois, aprendi que Max Weber havia cunhado a expressão “processo de intelectualização” para o fato de que, há milênios, não sabemos como funcionam as coisas que usamos para viver, entender e segurar a vida.
Um membro de uma sociedade com tecnologia mais pobre, dizia Weber, sabe não só como funciona uma lança ou um arco, mas sabe como fabricar esses instrumentos; ao passo que nós não temos a menor chance de explicar a fala de um radio ou o frio que emana de aparelho de ar-condicionado. Construí–los, então, nem pensar.
A pergunta do sábio Apinayé fazia sentido. Se o radio falava, o que o animava? Se eu podia fazê-lo falar, por que ele não me ouvia, como questionaram os gaviões?
Isso ajuda e entender a ideia de “aparelho”, um conceito datado, pelo dicionário “Houaiss”, do século XIII e que figura igualmente no “Aurélio” como um meio para uma dada finalidade. De fato, temos aparelhos para tudo: para as necessidades fisiológicas vitais, para comer, dormir, ver, andar, curar, escrever, cantar e destruir. Dai o nosso sentimento de vazio quando não temos aparelhos adequados em certas situações.
Somos humanos, logo seres dos aparelhos e neste deprimente Brasil lulopetista, desandado pela gerentona Dilma, dos abusivos aparelhamentos os quais formam correntes transmissoras de atos marginais que revoltam a quem se preocupa com o futuro.
O aparelhamento é uma prótese e nós, como ensina Freud, inventamos um mundo de próteses com a criação de um sistema simbólico que se chama cultura.
Todos fazemos parte de um aparelho e servimos como mais uma prótese de uma dada esfera de significação social. Sou professor e escritor e, como tal, faço parte de um vasto aparelho cuja prótese mais visível é um texto.
Honro o sistema que me aparelhou. Nenhum aluno me paga por fora e eu não aumento os meus honorários enquanto escrevo uma matéria. Não sei o que é superfaturamento e os meus contratos não passam por conselhos de homens de negócios experimentados e de uma gerentona que, observo consternado, não se lembram de reuniões onde uma Petrobras compra refinarias como nenhum de nós compraria uma penca de bananas.
Seria ela uma prótese? Claro que sim: ela foi desenhada para produzir petróleo para o Brasil. Mas, quando uma empresa faz negócios sem a racionalidade do senso comum, cabe — com devida vênia e legitima indignação — perguntar até onde ela virou um aparelho que, tal como o meu radinho, obedece, trama e enriquece os atuais donos do Brasil.
Fonte: O Globo, 109/04/2014
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