A narrativa convencional diz que o PT está dividido. De um lado, o próprio Lula, a direção partidária (Gleisi Hoffmann) e a maioria da bancada parlamentar federal insistem na candidatura de Lula. De outro, barões (Jaques Wagner, Haddad) e governadores do partido (Fernando Pimentel, Rui Costa, Camilo Santana) inclinam-se por um acordo com Ciro Gomes.
De fato, porém, a aparente divisão reflete uma estratégia definida por Lula. O nome do candidato de Lula é Ciro. A duplicidade não passa de uma operação tática.
Desde o impeachment, o PT converteu o duplo discurso em modo de vida. Há um discurso “para dentro”, destinado à militância e às bases da esquerda, que se exprime pela linha da resistência ao “golpe do impeachment”. Há, paralelamente, um discurso “para fora”, que se exprime pela política de alianças eleitorais com os “partidos golpistas” (MDB, PP et caterva).
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O radicalismo verbal pagou dividendos: a elevação do lulista Boulos a candidato do PSOL enreda a esquerda dissidente na teia petista. A “realpolitik” também: o pacto “Minas para o PT, Pernambuco para o PSB” restabelece uma ponte rompida pela coligação entre Eduardo Campos e Marina Silva.
A militância de esquerda, no PT e alhures, precisa ser dopada por proclamações simbólicas que ajudam a metabolizar os gestos práticos do realismo lulista. Nicolás Maduro acaba de receber calorosas felicitações do PT e do PC do B por sua “retumbante vitória política e eleitoral”, apontada em nota conjunta dos dois partidos como “expressão da vitalidade” dos “sólidos laços do governo com o povo”.
No campo puramente verbal, quase nada distingue o PT de Boulos, do PSOL ou do chavismo crepuscular. Já no campo prático, o partido de Lula procura caminhos para se reinserir na máquina federal, mesmo se como sócio menor de uma coligação liderada por Ciro.
Lula nunca se moveu por convicções políticas ou ideológicas: seu norte obsessivo, hoje como ontem, é conservar o poder pessoal. Nas amargas circunstâncias atuais, o poder de Lula circunscreve-se ao PT –e sofreria rápida erosão caso o partido tivesse candidato presidencial próprio.
Daí a insistência de Lula na fantasia de sua candidatura, que funciona como um ferrolho, impedindo o surgimento de alternativas dentro do PT. O ex-presidente anunciará sua desistência apenas na hora derradeira, quando só restar aberta a trilha de adesão a Ciro. Mas, claro, Jaques Wagner, um dos seus mais fiéis escudeiros, negocia desde já o pacto de aliança.
Ciro joga segundo suas próprias regras, descrevendo curvas táticas na faixa de fronteira do lulismo. No Fórum da Liberdade, dobrou-se à ética da responsabilidade, comprometendo-se com o equilíbrio das contas públicas e com algum tipo de reforma previdenciária. Depois, acenou reiteradamente ao PT, sugerindo que reverterá a lei do teto de gastos e reinstalará a gestão política que faliu a Petrobras.
Num ponto, manteve notável coerência: a promessa de revogar a reforma trabalhista, isca destinada a atrair as corporações sindicais de trabalhadores e empresários. Ele sabe que a distância que o separa do segundo turno é uma composição com o lulismo.
O pleito de 2018, nos estertores da Nova República, deve ser lido à luz da eleição de 1989, a primeira da redemocratização. Hoje, como três décadas atrás, um governo carente de legitimidade eleitoral agoniza em praça pública.
Agora, como antes, a fragmentação do centro político descortina o cenário de um turno final disputado entre um outsider e o candidato da esquerda populista.
Aí, vêm as diferenças. A primeira: o outsider de hoje (Bolsonaro) é um extremista sombrio, incapaz de triunfar na reta de chegada. A segunda: o descontrole inflacionário, que precedeu a disputa de 1989, pode ser o fruto da disputa agônica de 2018. Nos 200 anos de Marx, a (nossa) história se repete –como farsa.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 26/05/2018