A democracia promove, sem cessar, aparições. Começa a ficar complicado para quem governa domesticar fantasmas. Os espíritos surgem naquilo que Tocqueville descobriu como sendo o espírito da vida democrática: a opinião pública. Esse poder inventado pela igualdade que ele chamava de força geradora da vida liberal.
Sem opinião pública, as aparições somem ou são controladas. Hitler e sua camarilha domesticavam o fantasma do projeto de extermínio de judeus e de categorias marginais como os deficientes, os ciganos e os homossexuais. Havia suspeição do extermínio, não a prova cabal que apareceu na derrocada do nazismo, em 1945, confirmando as atrocidades. O mesmo ocorreu com as torturas da ditadura militar. As torturas eram negadas, ninguém era responsável e até hoje há quem nelas não creia ou admita e, no entanto, tal como os fantasmas, elas existiram.
O fantasma é parente do boato, do banal “ouvi dizer” que serve como alerta, aviso ou premonição. Os antigos psicólogos sociais escreveram sobre o boato como um desejo secreto (a notícia da morte de uma figura pública repudiada, por exemplo); e pelo menos um antropólogo da minha decadente tribo – Max Gluckman – revelou como a intriga e o escândalo eram elementos fundamentais de controle social. De fato, a igualdade de todos perante a lei era uma fantasia no Brasil. Hoje, graças e uma imprensa livre que honra a reportagem investigativa, pois sabe que falcatruas jamais vão ser impressas no Diário Oficial da União, começamos a assistir ao julgamento e à condenação de poderosos membros do governo do PT. Se eles vão mesmo para a prisão é uma outra história, já que pelo menos um ministro do Supremo defende multas pecuniárias em vez de cadeia para crimes de “colarinho branco”, essa excrecência jurídica nacional. Ademais, com a figura da prescrição, é possível que nós, o povo – as pessoas comuns, os governados -, tenhamos que indenizar os responsáveis pela politicalha do mensalão e adjacências cujos responsáveis já teriam cumprido suas penas. Os seus ilícitos seriam fuxicos, fantasias, fantasmas e projeções.
O fuxico é a fumaça, o fato que a concretiza é o fogo. Onde há fumaça, há fogo, diz-se confirmando uma perspectiva de plausibilidade humana sem a qual a vida social seria impossível. O fuxico é a fantasia que configura um ato antes de ele ocorrer ou surgir como fato, daí o seu poder controlador. O boato tem que ser tratado com cuidado, tal como se faz com as fantasias, porque certos eventos despertam o lado nosso vingativo. Inimigos políticos tendem a fuxicar com exagero. São inventores de fantasmas porque, muitas vezes, suas fantasias são como os 40 moinhos de vento que Dom Quixote via como gigantes. Quem não se lembra da campanha contra o Plano Real e a sua “herança maldita”? Mark Twain, cuja independência de pensamento causava inveja até mesmo na América dos livres e iguais, disse uma vez que as notícias (ou boatos) sobre sua morte eram muito exagerados.
Isso é suficiente para estabelecer o elo entre a projeção que aciona o desejo e a fantasia. O desejo de morte do inimigo surge antes de sua morte. O adversário vira um fantasma antes mesmo de ser enterrado.
O Brasil da era Lula está coalhado de fantasmas e, mais do que isso, de aparições. É o que leio nos jornais com pavor e vergonha. O julgamento do mensalão deixa ver melhor o queijo suíço de falcatruas, nomeações indevidas e das roubalheiras programadas desses tempos. A todo momento uma nova aparição, como é o caso da super-Rosemary Noronha, essa prova de um aparelhamento deslavado do estado pelo partido no poder que, obviamente, quer ser o poder. O partido que eu e milhões de brasileiros supúnhamos que iria liquidar esse Estado provedor, mas ao mesmo tempo canalha, que sempre foi pai dos pobres e mãe dos ricos e, hoje, é a madrinha dos correligionários que, com ele e por meio dele, mas em nome do povo pobre, se tornam milionários!
O procurador-geral da República no seu libelo contra os mensaleiros deu uma medida precisa dos atos vergonhosos que fizeram. O fantasma tornou-se aparição e a aparição virou um cadáver que – espero – tenhamos a coragem de sepultar, ao lado dos crimes cometidos contra o espírito humano nos tempos da ditadura militar. Uma coisa tem uma óbvia ligação com a outra. E uma não pode ser tratada como fantasma (o mensalão) e a outra como verdade, ou vice-versa. Cabe a todos nós rasgar esse véu de uma histórica hipocrisia, sempre justificada pela fantasia dos elos pessoais: aos amigos o heroísmo de um passado que lhes permite tudo; aos inimigos o opróbio da falsidade e dos interesses ocultos. O Supremo liquidou essa lógica, colocando-a nos seus devidos termos. Todos, inclusive e principalmente os amigos, são também sujeitos da lei.
A aparição é como os boatos e fuxicos um exemplo da operação da opinião pública. Essa figura que, numa democracia, representa o todo e a alma de um país democrático. Esse modo de existir que não é mais um fantasma, mas uma realidade de nossas vidas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 28/11/2012
Fica evidenciado que a família real jamais deixou o Brasil e, se o fez, deixou uma saudável prole que deu continuidade às tarefas essenciais da nobreza.
Que pena que Geraldo Brindeiro, o”engavetador geral” e a Mídia Poderosa não deixaram partir o queijo suíço do governo FHC. Aí, sim, veríamos horror maior que o “mensalão”. O menor buraco seria a compra de votos para a reeleição.