Desde 2002, sete pessoas, em média, morrem diariamente de forma violenta na cidade do Rio. Foram 38 mil homicídios no período, segundo levantamento do G1 com base em dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).
São policiais e criminosos mortos em confrontos, moradores de áreas dominadas por facções de milicianos ou de traficantes, mortos em brigas, vítimas de latrocínio ou de balas perdidas, entre outros casos. Gente que entrou para uma triste estatística, e que o sistema judicial não consegue, em 90% dos casos, descobrir os mandantes do crime ou quem, simplesmente, apertou o gatilho.
Dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mostram que de 6.073 inquéritos iniciados em 2009, apenas 150 viraram denúncias, oito anos após o seu início. Até agora, 1.512 foram arquivados. Outros 40 entraram na categoria “desclassificados”, ou seja, deixaram de ser homicídio e passaram a ser tentativa de homicídio, o que retirou os casos do Tribunal do Júri e levou o processo para uma vara criminal. Do total, 4.371 casos ainda estão sendo investigados.
“A situação é muito ruim. Temos vítimas de todos os lados e o que o Estado deve pensar agora é em uma mudança de postura. A guerra às drogas como é feita só tem resultado em mortes. É assim há 20 anos, 30 anos e o que vemos são governos que compram mais armas e viaturas novas. Já paramos para pensar quem ganha com isso? Alguém deve estar ganhando. O Estado precisa entender que ele precisa preservar vidas. Não consigo vislumbrar um futuro melhor se a gente não trabalhar em uma mudança de postura”, analisa a socióloga Klarissa Platero, do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Retomada da violência
Após uma queda ao longo da primeira década deste século, o número de casos de homicídios voltou a crescer no Rio. Coincide com a derrocada do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a maioria delas vivendo a retomada dos confrontos entre policiais e traficantes, além do abandono do programa de metas, que auxiliou no aumento da produtividade policial.
Especialistas afirmam que esses pontos foram importantes para a retomada do crescimento de mortes violentas no Rio, Citam também a dificuldade em reverter o quadro quando se foca o combate no roubo de cargas.
Estrutura policial
A investigação de mortes violentas no Rio é feita pela Delegacia de Homicídios (DH) que, em 2010, foi reformulada e passou a adotar um novo modelo de investigação. A partir de então, cada local em que se constata este tipo de crime recebe de forma imediata uma equipe formada por delegado, investigadores e peritos criminais e legistas destacados apenas para aquela função. De três a cinco carros chegam para atender um caso, iniciativa que virou modelo para outros estados do Brasil. A ideia era elevar o patamar de elucidações que beirava os 2,5%, de acordo com policiais ouvidos pelo G1.
Dois anos depois de a DH ser reinaugurada, em 2012, a socióloga Klarissa Platero acompanhou durante três meses (a partir de uma sexta-feira de carnaval, em fevereiro daquele ano, e até maio) o trabalho dos policiais. Foi junto com os investigadores em 19 locais de homicídios escolhidos aleatoriamente. Um ano depois, a polícia havia descoberto os assassinos de dois casos.
“Eu considero a taxa de elucidação satisfatória, em razão da quantidade de homicídios e dos recursos disponibilizados. Os agentes da Scotland Yard, a polícia inglesa, disseram que a gente faz milagre. E eu discordo que seja 10% [a taxa de solução]. Uma investigação de homicídio não é como se fazer uma receita de bolo. Investigar demanda uma complexidade muito grande. O caso do filho do Carlinhos de Jesus, por exemplo, demorou um ano para desvendar. Recentemente, a DH da Capital demorou 6 meses para investigar a morte daquela líder comunitária da Cidade Alta (Glória Maria dos Santos Mica, morta por um policial militar). O que é importante da investigação de homicídio é que nós tenhamos a continuidade dessa investigação. Já chegamos aqui a 27,5% de taxa de elucidação”, explica o delegado Rivaldo Barbosa, chefe da DH.
Quando fala em continuidade na investigação, o delegado descumpre uma norma da Secretaria de Segurança assinada pelo então secretário José Mariano Beltrame. De acordo com a determinação, após um período, cerca de 30 dias, a investigação deixa a DH e volta para a delegacia distrital onde o fato aconteceu. Isso explica porque tantos casos permanecem no chamado “pingue-pongue” entre delegacia e Ministério Público.
A investigação deixa uma especializada e se junta a tantos outros inquéritos numa delegacia comum. “Eu cumpri todas as diligências pedidas pelo Ministério Público. Após a morte do meu filho, comecei a estudar Direito para entender como isso funciona. Foi assim que ajudei na condenação dos envolvidos”, conta Márcia Jacinta, de 55 anos, mãe de Hanry de Oliveira Silva, de 16 anos.
O jovem foi morto em 2 de novembro de 2002, na favela do Gambá, no Lins de Vasconcelos. Em seus relatos, os policiais disseram que o rapaz estava armado. De acordo com Márcia, o filho levava apenas um molho de chaves nas mãos.
“Você não cria um filho para encontrá-lo no IML [Instituto Médico Legal, onde é realizada a necropsia]. Viram uma arma na sua mão, mas o que ele carregava era um par de chaves. Eles [a polícia] estão destruindo nossos jovens.”
Atualmente, a Delegacia de Homicídios da Capital tem 220 policiais, 12 peritos de local e 10 legistas para investigar uma média de 1.324 homicídios por mês.
Cerca de 80% das mortes são causadas por armas de fogo e com características peculiares: na maioria dos casos, os corpos são encontrados nas ruas, seja em favelas ou em pontos isolados de bairros como Campo Grande e Santa Cruz, ambos na Zona Oeste da cidade.
Há corpos com um tiro ou com 20 disparos dos mais diversos calibres. E em sua maioria, as vítimas, quando encontradas, são deixadas em locais distantes de onde ocorreu o crime. Práticas normalmente adotadas por milicianos e traficantes, segundo policiais civis.
De acordo com o delegado Rivaldo Barbosa, um estudo da Divisão de Homicídios revela que, quanto menores forem o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a expectativa de vida na região, maior a quantidade de homicídios.
“Isso não quer dizer que as pessoas que moram em região pobre são violentas. Muito pelo contrário. Essas pessoas são vítimas duas vezes. Essas pessoas são vítimas da falta de saneamento básico, de serviços públicos essenciais, e também sofrem com a influência do crime organizado. Essas áreas são que deveriam ter uma atenção bem maior do próprio poder público”, argumenta o delegado.
Segundo ele, os bairros citados sofrem uma influência muito grande de organizações criminosas.
“É o que gera o homicídio. A milícia se mata entre si, o tráfico se mata entre si, e os dois se matam. Esse é um grande percentual de mortes aqui no Rio de Janeiro. Um exemplo: milícia, área da 35ª DP [Campo Grande]. Tráfico? Pavuna. E tráfico, jogos e milícia? Bangu e Realengo”.
Dificuldades da investigação
Segundo a socióloga Klarisse Platero, as perícias de mortes violentas têm características distintas dependendo do local onde os corpos são encontrados. Quando é no interior de casas e residências, há uma apuração maior. Diferente de quando as vítimas são encontradas nas ruas.
Além de dificultar a identificação do autor, o abandono dos corpos é tipificado nas estatísticas como encontro de cadáver e que não aparece nas estatísticas como morte violenta. Como não é uma classificação adotada pelo Código Penal, os encontros de cadáver também entram no pingue-pongue entre polícia e Ministério Público em apurações sem fim.
Os últimos dados disponíveis do Conselho Nacional do Ministério Público mostram que 4.037 inquéritos de homicídios no Rio já tiveram 33.091 diligências. Isso significa que, em média, cada inquérito já fez por sete vezes o caminho entre delegacia e a promotoria.
Junta-se a isso que muitos corpos são encontrados sem identificação. Como não há um cadastro nacional de identificação civil, se a vítima é de outro estado e nunca cometeu um crime, ou seja, não passou pela polícia, não tem como ser identificada já no local do crime.
“É claro que os inquéritos melhoraram com a DH. O problema hoje é que ficamos esperando laudos que demoram a chegar. Aí o que vemos são processos baseados em depoimentos de testemunhas que não viram o fato, mas conheciam as vítimas e só falam da moral da vítima ou do criminoso”, conta a juíza Renata Gil Alcântara, presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj).
Crise: sem novos investimentos
A crise financeira do estado do Rio de Janeiro também foi sentida nas investigações das mortes violentas. Os 22 peritos que integram a equipe da DH da Capital não recebem gratificação por atuarem na delegacia e nem tem direito a insalubridade pelo serviço desenvolvido. Diferentemente dos peritos lotados no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, sede da perícia no Rio.
No início do ano, faltou o reagente luminol que destaca em locais de homicídios possíveis marcas de sangue. O material foi reposto, mas hoje há racionamento para o uso dos produtos.
“O Ministério Público tem pedido em transações penais a doação de materiais para a perícia. Assim podemos cumprir com as nossas atividades”, conta a perita Denise Rivera, presidente da Associação de Peritos do RJ.
“A DH melhorou a qualidade das investigações, mas há vários problemas na investigação dos crimes de homicídio. A Polícia Civil sempre foi esquecida. O governo não prioriza a polícia técnica, não se prioriza o conhecimento. Não se apoia a investigação, mas a polícia ostensiva, o confronto”, comenta o investigador Aurílio Nascimento, há 32 anos na polícia carioca e com três passagens pela Homicídios.
O coordenador das DHs reconhece que a crise atrapalha na solução dos crimes.
“Eu já estou aqui há cinco anos, já passei aqui por três chefes de polícia. Todos eles, mesmo com a crise, têm tentado minimizar as delegacias de homicídio no que diz respeito a recursos humanos, logísticos. Mesmo assim, há uma dificuldade enorme. A crise inviabilizou nosso contrato de conserto de viaturas. Hoje, quando uma viatura quebra, vamos com apenas quatro em vez de cinco carros. A segurança pública depende de recursos. Com os recursos em falta, todos nós sofremos com isso”, conta Rivaldo.
Busca por soluções
Em 30 de maio passado, o secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Nunes, recebeu 12 famílias, vítimas de violência policial, prometendo que o governo estadual acompanhará de perto as investigações das mortes.
“Estamos conversando com o secretário [de Segurança] Roberto Sá sobre a preocupação que temos com as incursões. Vidas têm que ser preservadas. São vítimas para todos os lados. Essas famílias têm dificuldade de denunciar, inclusive as ameaçadas”, diz o secretário.
Em 26 de maio, o G1 pediu à assessoria do secretário de Segurança uma entrevista para falar sobre o tema de letalidade violenta no Rio, incluindo mortes de policiais e de civis em confronto com as polícias. O pedido foi reafirmado por duas vezes, sem resposta. A Polícia Militar também não respondeu às solicitações de entrevista feitas pela equipe de reportagem.
Fonte: G1.
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