Envergonha e desperta comiseração o cataclismo de lama de Brumadinho, graças aos trabalhos da nossa maior mineradora. A Vale, cuja grandeza global também engendrou um vale de lágrimas. E criou o momento crítico, trágico e indescritível (mas característico) dos imprevistos que fazem parte do que nós chamamos de “vida”. O maior e o mais poderoso, engendrando o pior e o mais tenebroso.
Essas ironias nos acompanham, pois todo inesperado e, acima de tudo, todos os planejados, acentuam como é tênue o nosso trajeto ao mesmo tempo que remarcam como aquilo que traz progresso contém simultaneamente sua cota de atraso.
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É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.
É preciso ir além desse harmonioso rendado de imagens paradoxais, reunidas pelo inconsciente mágico de Tom Jobim; quando — num exercício de livre associação promovido pela continuidade da música – remete a alegrias e angústias?
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Por favor, leitor, releia e relembre se puder toda a letra.
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É fácil falar de mudança, transformação e revolução. É mais tranquilo ainda reiterar os erros e realizar o nosso exercício favorito: atrapalhar o Brasil através de normas, governos, políticos e partidos. Até votar uma mesa diretora de um Senado recém-empossado transforma-se numa vergonha, mas – eis o tom do momento liminar e paradoxal – confirma as renovações dos fins de sistemas e etapas.
Estou seguro de que estamos dispostos a mudar. E mais que isso: estamos convencidos de que somos obrigados a mudar. As urnas mostraram um sistema cultural que chegou ao seu limite, mas não terminou.
O cataclismo da Vale traz à tona os lugares-comuns de sempre: punir, denunciar e intrigar, mas singularmente revela o mais difícil de aprender: o laço amistoso dos jogos de favores entre pessoas no sentido de favorecer seus interesses e dissolver coerências ideológicas. O que se observa claramente é o fetichismo das normas (e ideologias) por contraste com uma esperada e necessária eficácia de preocupações preventivas. As barragens não conseguem barrar o jogo político e econômico baseado no favor e naquilo que caracteriza o nosso secular elitismo: a simpatia pessoal que privilegia os que chegam ao clube do poder à brasileira.
O famoso “esse eu conheço!”, que começa a perder força iniciando timidamente uma aguda consciência dos limites entre os cargos, e os papéis sociais em suas imposições. E com os limites consequentes de dizer não aos amigos e, acima de tudo, a si mesmo. Esse ponto de inflexão da boa-fé, sem o qual não há mortalidade, é – permitam-me – o traço central da democracia. Esse regime que obriga a distinguir os interesses pessoais dos impessoais, coletivos ou públicos. Coisa fácil de falar, mas até onde sei – leio o meu A Casa e a Rua – muito difícil de fazer no Brasil.
A fusão de pessoas e papéis engendra um estilo onipotente de poder. Ele começa na igualdade legal, mas depois das polarizações, promessas e posses, retorna a suas zonas de conforto e restabelece a velha aristocracia dos cargos devidamente apropriados por seus atores.
+ Fernando Gabeira: Algumas reflexões diante da lama
A expectativa é que o novo governo tenha uma aguda percepção dos limites, dos deveres e das obrigações coletivas de todos os cargos públicos. O sistema político brasileiro tem de mudar no sentido de conter-se e diminuir o seu poder e aí temos um enorme desafio para uma elite que sempre governou pensando o justo oposto. Pois jamais deixou de ampliar e concentrar o seu poder.
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PS: Como prova desses tempos de mudança e de aprendizado com a lama, nos quais o velho e o novo surgem misturados, revelando a relatividade dos polos, finalmente a esquerda vai apoiar no Senado da República um coronel puro-sangue.
Fonte: “Estadão”, 06/02/2019