A questão quilombola, nos últimos anos, ganhou um alcance político-ideológico que a situa para muito além do que está disposto no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Com efeito, esse artigo trata do reconhecimento dos quilombos efetivamente existentes quando da promulgação de nossa Carta Maior, em justo reconhecimento aos escravos fugidios, que tinham conseguido afirmar a sua liberdade, emancipando-se dos laços da escravidão. Tratava-se, e trata-se, de um justo reconhecimento em relação a uma injustiça que se abateu sobre toda a população negra de nosso país.
No entanto, a Fundação Cultural Palmares e o Incra, auxiliados por um grupo de antropólogos e membros do Ministério Público, passaram a agir à revelia da lei por intermédio do que denominam de ressemantização da palavra quilombo. O quilombo já não mais significaria um povoado formado por escravos negros (havia também índios e brancos de baixa extração social), situado em áreas afastadas dos centros urbanos, edificados com preocupações defensivas, mas uma identidade cultural, que se aplicaria, segundo um Decreto posterior, 4.887, de 2003, a um processo de autorreconhecimento.
Um grupo dito étnico estaria investido da prerrogativa de se dizer “quilombola”, essa palavra ganhando significado pelos intermediários do discurso, os agentes da ressemantização, os antropólogos.
Os termos da questão estariam, então, completamente invertidos, via a utilização de uma ficção, a de um quilombo conceitual, que seria “reconhecido por antropólogos a serviço da “causa”. Consoante com essa posição, a Fundação Palmares e o Incra passaram a reconhecer como quilombo qualquer “identidade cultural”, “étnica”, doravante aplicando-se a qualquer centro cultural, por exemplo, um terreno de umbanda ou de candomblé. “Terreiros” seriam “quilombos”. Os processos de desapropriação não conheceriam mais limites, não importando, como o estabelece a Constituição, que se trate ou não de quilombos efetivamente existentes em 1988, segundo definições constantes em dicionários.
Um basta foi dado a tanta arbitrariedade graças a uma sentença do juiz federal Tiago do Carmo Martins, numa ação interposta pelo advogado Nestor Hein, defensor de pequenos agricultores na localidade de São Miguel, Restinga Seca, no Rio Grande do Sul. Trata-se do processo nº 2007.71.02.009430-8/RS, da 2a- Vara Federal de Santa Maria (RS), que julgou procedente a ação judicial, tendo como réu o Incra. Observe-se que esses pequenos agricultores possuem propriedades entre 15 e 20 hectares, estando aí estabelecidos desde 1850, sendo o fruto da colonização alemã e polonesa desta região.
O juiz frisa que a Constituição, em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispõe o ano de 1988 como a linha divisória permitindo determinar o reconhecimento de quilombo, ou seja, áreas efetivamente sob ocupação quilombola, e não áreas ficcionais futuramente criadas segundo um outro conceito de quilombo, o quilombo conceitual, não histórico.
Nas palavras do juiz: “Ora, o reconhecimento operado pelo Art. 68 do ADCT é limitado às comunidades que estivessem, em 05 de outubro de 1988, ocupando áreas historicamente constitutivas de quilombos. Sendo assim, o desapossamento de terceiros, com o fito de restituir a gleba aos remanescentes de quilombo, não encontra espaço de aplicação na seara do Art. 68 do ADCT, porquanto este tem como requisito indispensável a permanência de ocupação da terra pelas comunidades em questão.”
Logo, caberia ao Estado, ainda de acordo com o texto constitucional, emitir os títulos respectivos àquelas comunidades de quilombo, efetivamente ocupando aquelas terras e não emissão de títulos sobre terras de terceiros. Calculava-se, na época, a existência de menos de cem quilombos, segundo diferentes estimativas, inclusive da própria Fundação Palmares, enquanto com a nova significação da palavra quilombo a estimativa sobe para em torno de 4.000 comunidades quilombolas, não havendo mais limites para essa proliferação.
O ineditismo da decisão judicial reside, ademais, no fato de demonstrar que o Decreto 4.887 regulamenta para além do que está disposto na Constituição Federal. No dizer do juiz: “Com efeito, o cotejo do Decreto 4.887/2003 com os dispositivos constitucionais e legais acima transcritos denota invencível incompatibilidade entre o regulamento e as normas hierarquicamente superiores.” O problema se torna tanto mais grave que as atribuições da Fundação Palmares estariam sendo transferidas, por decreto, ao Incra.
Ora, além da impropriedade constitucional e administrativa, o problema ganha um contorno ainda maior pelo fato de a Fundação Cultural Palmares não ter histórico de recusa de qualquer demanda de reconhecimento, pois segue a noção de quilombo conceitual, falsificando completamente o seu processo de identificação. Qualquer terra se torna, então, passível de desapropriação.
Questão tanto mais controversa que, no dizer do juiz, o Art. 68 da ADCT “não comporta espaço para desapropriações, pois pressupõe o simples reconhecimento da titularidade de área já ocupada e mantida por remanescentes de quilombos”.
O Incra estaria agindo segundo uma legislação infralegal, que afronta a Constituição, tornando-se uma fonte de atos arbitrários, desprovidos de amparo constitucional. Esse órgão do Estado não poderia regulamentar por desapropriações o que não está previsto na própria Constituição. O seu ato dito de regulamentar extrapolaria sua missão legal, sendo fonte de insegurança jurídica. O Decreto 4.887/2003 não pode regulamentar um “dispositivo constitucional que não comporta margem a desapropriações”. Com mais razão ainda, as regulamentações feitas pelo próprio Incra através de suas “Instruções Normativas” careceriam de base legal. Eis a questão que o Supremo deverá necessariamente enfrentar.
Fonte: O Globo, 22/11/2010
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