Por Rafael Leite
Na noite de 19 de novembro de 2023, Sérgio Massa, representante do peronismo governista, admitiu sua derrota no segundo turno das eleições presidenciais para Javier Milei, o libertário que irrompeu no cenário político argentino como um vendaval. Esta eleição não apenas ilustra uma virada dramática na política argentina, mas também sinaliza uma era de transformações profundas em um país acostumado a mudanças vertiginosas.
A antecipação de Massa em reconhecer sua derrota, antes mesmo de qualquer resultado oficial ser divulgado, ilustra o modus operandi peronista no trato com o Estado argentino. Os dados, que deveriam ser guardados a sete chaves por uma autoridade eleitoral teoricamente independente, foram vazados para o candidato do governo? Em caso afirmativo, seria apenas mais um episódio de abuso explícito da máquina pública em benefício do incumbente, em uma campanha repleta de manobras que colocaram em cheque a integridade das instituições argentinas,
fazendo as eleições brasileiras parecerem um modelo nórdico de retidão.
A campanha de Massa foi um espetáculo de manipulações políticas. O presidente ¿em exercício? Alberto Fernández, foi relegado a um papel insignificante, enquanto Massa, investido como presidente de fato, assumiu as rédeas do país. A legalidade e a legitimidade desse inovador tipo de golpe é algo a ser discutido pelos cientistas políticos. Sob a batuta de Massa, o governo multiplicou programas de transferência de renda financiados por emissão monetária desenfreada. Mas os abusos vão além destas medidas que estão no coração da espiral inflacionária argentina. A
destruição do sistema de preços, políticas distributivas regressivas favorecendo os mais ricos, a violação flagrante da lei de responsabilidade fiscal durante a campanha e a total discricionariedade na distribuição de cotas de importação no contexto de uma política selvagem de controle de divisas são apenas alguns exemplos.
A natureza autoritária e opressiva do (de fato) governo Massa se manifestou em situações como as que tornaram a sobrevivência de pessoas dependente de favores políticos para acesso a insumos médicos essenciais. Essa abordagem violenta, servil e autoritária, frequentemente atribuída ao partido de Milei, é, não-ironicamente, uma característica marcante do próprio peronismo em sua encarnação kirchnerista.
A vitória de Javier Milei, que muitos avaliam como surpreendente, é tão somente o reflexo do descontentamento argentino com o status quo. Não se destrói a economia de um país sem consequências. Milei, conhecido por suas aparições em programas televisivos de qualidade questionável e por um temperamento explosivo, emerge como uma reação a violência do desastre econômico Fernández-Massa.
É tentador atribuir a ascensão de Milei unicamente aos índices alarmantes de inflação, que indubitavelmente influenciaram o eleitorado. No entanto, a inflação é apenas a ponta do iceberg de uma crise econômica multifacetada. A persistência de altos níveis de inflação não só erodiu o poder de compra, multiplicando os índices de pobreza, mas também desestabilizou o sistema de preços, já fragilizado por uma política inconsequente de subsídios, que desviou recursos de funções básicas como educação e saúde, cuja qualidade se deterioram rapidamente.
Sob o governo de Alberto Fernandez, a Argentina enfrentou um desequilíbrios macroeconômicos variados. Desde o início, o governo demonstrou desinteresse em implementar reformas necessárias, optando, em vez disso, por adiar ajustes inevitáveis. Esses ajustes, longe de serem indolores, acumularam-se ao longo dos anos, aprofundando distorções na alocação de recursos e decisões de investimento.
Este cenário de hesitação e inércia política pavimentou o caminho para a ascensão de uma figura como Milei, que, apesar de suas excentricidades, foi interpretada como sinal de mudança em um país economicamente asfixiado.
A destruição do poder de compra e a desestabilização do sistema de preços, resultando em uma insegurança econômica generalizada, desesperança e um horizonte financeiro nebuloso, inevitavelmente alteram o ânimo social e alimentam o apelo de alternativas políticas radicais. A eleição de Javier Milei, portanto, deve ser vista como uma resposta direta à errática condução econômica da gestão Fernández-Massa, cujo único horizonte foi evitar assumir o custo das profundas reformas que são necessárias para tornar a Argentina um país economicamente funcional.
É imprescindível reconhecer que a negação de princípios econômicos básicos, como a relação entre emissão monetária e inflação, por parte do peronismo em sua encarnação kirchnerista, é a raiz deste resultado eleitoral. Essa postura contrasta com a compreensão (ainda que frouxa) que muitos grupos de esquerda na América Latina têm sobre as limitações orçamentárias e os trade-offs entre inflação e equilíbrio fiscal. Em todos os seus anos como incumbente, o peronismo kirchnerista falhou em confrontar esses dilemas econômicos, mantendo-se alheio às realidades fiscais.
É nesse contexto que a eleição de Javier Milei pode, paradoxalmente, não ser uma notícia assim tão ruim para o kirchnerismo. Como em 2015, eles irão transferir a responsabilidade de corrigir os desequilíbrios macroeconômicos por eles criados para um governo opositor. Sem reconhecer sua parcela de culpa no desastre econômico deixado para trás, a esquerda não contribuirá com os esforços de reforma necessários para restabelecer a normalidade econômica.
Tal como ocorreu durante o governo Macri, é provável que a oposição recorra a violência nas ruas, como quando 14 toneladas de pedras foram atiradas ao Congresso argentino em resposta à aprovação de uma reforma previdenciária.
A eleição de Milei reflete a triste realidade de um país que escolheu um homem sem experiência em gestão dos assuntos de Estado, sem uma equipe técnica e sem base política sólida, impulsionado principalmente pela rejeição ao descalabro econômico. Diferentemente da coalizão que levou Macri à presidência em 2015, Milei carece de um programa mínimo para a reconstrução da Argentina pós-kirchnerista. A despeito de ter publicado um interessante plano de governo, que acena para o necessário equilíbrio entre livre mercado com a proteção social, a campanha de Milei foi marcada por um comportamento errático e pela marginalização de debates construtivos. Focou-se, como ilustrado por um de seus spots de TV, na destruição do peso, do Banco Central e dos esquerdistas.
Milei encontrará uma oposição ativa e organizada, pronta para atribuir ao novo governo os custos do ajuste macroeconômico, e não contará com uma maioria legislativa clara. Nesse contexto, a Argentina poderá enfrentar um período de grave turbulência política. O exemplo de Pedro Castillo no Peru é ilustrativo, não tanto por sua tentativa fracassada de golpe, mas pela destruição lenta e silenciosa da capacidade estatal causada pela instabilidade política. Castillo trocou 73 ministros em menos de 500 dias, afetando significativamente avanços em diversas áreas de
políticas públicas.
A ascensão de Javier Milei também deve ser atribuída, é claro, à inabilidade da centro-direita argentina. Outrora habilidosa ao institucionalizar um amplo acordo político capaz de frear os instintos mais autoritários do kirchnerismo em seu auge, Juntos por el Cambio (JxC) se perdeu em disputas internas das quais a coalizão foi
a única perdedora. É deplorável que a centro-direita não tenha sido capaz de resolver suas divergências internas de maneira inteligente em uma eleição que poderia ter ganho com facilidade. É vergonhoso que tenham de ter se aliado a um grupo político que não apenas relativiza a ditadura, mas inclusive a reivindica, ainda que com certa vergonha (representado pela obscura vice-presidente eleita, Victoria Villarruel); que negue as mudanças climáticas; que ignore a relevância das políticas de defesa de minorias marginalizadas e oprimidas.
Milei, por outro lado, soube aproveitar politicamente a situação. Entendeu que havia uma oportunidade ao posicionar-se como uma alternativa tanto ao peronismo quanto ao JxC. Milei nunca demonstrou interesse genuíno em se juntar à coalizão opositora, e mesmo quando deu indícios de querer somar o PRO, partido de Macri,
à sua coalizão, não foi sério neste intento. Membros do PRO, como o habilidoso prefeito de Buenos Aires, Horácio Rodríguez Larreta, ou Silvia Lospenatto, conhecida por sua atuação histórica em favor da aprovação do aborto legal, jamais seriam aceitos pelos militantes libertários de Milei, considerados por estes como degenerados ou comunistas. Dada a importância da UCR (os chamados radicales), uma parte considerável da força política do agora quase-falecido JxC no legislativo federal argentino, mesmo que uma parcela substancial do PRO adira ao governo
Milei, este será um governo com base legislativa frágil e exposto a chantagens de todos os tipos.
Um otimista poderia antever a introdução rápida de um pacote de reformas econômicas lideradas por Milei, crítico da abordagem gradualista adotada pela gestão Macri. O cenário, no entanto, é de incertezas. Ainda que eleito a reboque de uma votação expressiva, Milei carece das maiorias legislativas e sociais que serão necessárias para dar suporte às reformas econômicas nas instituições e nas ruas, o que irá desacelerar sua capacidade de implementar seu programa. Mesmo apoiado por uma coalizão consistente mas ideologicamente diversa e um programa modesto (realista?) de reformas, Macri encontrou inúmeras dificuldades para governar e disputar o senso comum da sociedade. É claro que os tempos mudaram e o encanto da narrativa kirchnerista perdeu terreno na juventude e no campo cultural. Milei, contudo, possui menos recursos e estrutura que seu padrinho político, recém-convertido em seu apoiador, e prometeu uma agenda muito mais ambiciosa.
Ao longo de seus quatro mandatos, os kirchneristas demonstraram elevada negligência com a institucionalidade democrática e a econômica, levando a Argentina a um estado de crise profunda. A aparente calma nas ruas, pontuada por episódios esporádicos de violência e saques, é resultado do controle estrito exercido pelos peronistas sobre os movimentos sociais. Neste cenário, conceder-lhes mais uma chance seria um equívoco. Assim, a eleição de Milei representa de fato o menor dos males, em um pleito marcado por escolhas desastrosas e
responsabilidades compartilhadas.
É plausível que o governo Milei seja marcado pela fragilidade, enfrentando forte oposição tanto institucional quanto extra-institucional, manifestando-se no serviço público, nas ruas, na cultura e nos tribunais. No entanto, pode haver uma janela de oportunidade para iniciar as reformas de que a Argentina tanto necessita. Se Milei será capaz de capitalizar esta oportunidade e conduzir efetivamente o país por um caminho de recuperação econômica e estabilidade é uma questão que apenas o tempo poderá responder.