Talvez não se aplique aos tempos atuais a máxima de que “de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada”. O exemplo em que o Brasil poderá encontrar um paradigma de diálogo e de negociação vem, justamente, de um lugar bastante improvável, posto que historicamente caracterizado pela polarização política: a Argentina.
A rigor, a polarização continua, no sentido de que o kirchnerismo não parece disposto a dar qualquer trégua ao governo Macri, com vistas ao projeto “Cristina 2019”de retorno da ex-presidente. A diferença em relação a outras situações vividas pela Argentina por diversas vezes no passado está em três fatores. Em primeiro lugar, a postura de Macri. Tendo passado por circunstâncias de vida muito peculiares – a relação conflituosa com seu pai, um dos grandes “oligarcas” do empresariado argentino; a presidência exitosa do Boca Juniors; dois mandatos como prefeito de Buenos Aires; e, last but not least, um sequestro traumático, do qual pouco fala, mas que certamente ajudou a moldar sua personalidade atual –, ele tem dado mostras de ser um hábil negociador, atributo-chave para vencer a travessia dos quatro anos de governo, estando em minoria no Congresso.
A segunda diferença está na capacidade de gestão. Pode-se dizer que, pela primeira vez nos últimos cem anos, a Argentina terá uma experiência democrática com um governo que sabe exercer o poder e com capacidade de gestão. Desde a década de 20 do século passado, a Argentina teve basicamente três tipos de governo: 1) ditaduras militares; 2) governos peronistas, de perfil populista e cujo final era sempre mais ou menos desastroso, quando o dinheiro acabava; ou 3) governos associados à União Cívica Radical (o partido de Alfonsín), tradicionalmente associados a elementos positivos ligados à honestidade dos seus políticos, mas com a marca negativa da indecisão e da lentidão decisória, o que fez certa vez um prócer do partido declarar que “os radicais não gozamos com o poder, porque a gente sofre ao exercê-lo”.
Ainda que em diferentes contextos, foi esse pano de fundo que esteve por trás da deposição de Yrigoyen em 1930 e de Arturo Illia em 1966, bem como da hecatombe da hiperinflação que abreviou o mandato de Alfonsín em 1989 e do colapso da convertibilidade na fuga de De la Rúa de helicóptero da Casa Rosada, num país à beira de uma taque de nervos, em 2001. A única exceção talvez deva ser considerado o governo de Arturo Frondizi, de curta duração e também deposto por um golpe, com uma marca da tentativa de desenvolvimento, não por acaso o exemplo no qual Macri parece de alguma forma querer se inspirar. Em seu escasso tempo de exercício da Presidência, ele já deu provas de que tem uma noção muito precisa do tempo e que, com uma gestão ágil, procurará não incorrer na ingenuidade e na lentidão que acabaram levando ao descaminho outros governos não peronistas. O novo presidente indica claramente que fará tudo para evitar que a imagem de “hesitante”, “frouxo” ou “pouco executivo” seja colada à sua administração.
A terceira diferença é o aprendizado das diversas forças políticas. Os erros têm de servir para alguma coisa e há sinais de que uma nova geração de políticos–Sanze Carrió, pela aliança que levou à vitória de Macri, e, entre os peronistas, atores como De la Sota, Urtubey ou Massa – quer evitar os equívocos do passado, com um lado (o radicalismo, que na Argentina é de centro) querendo mostrar que é capaz de se livrar da “merca” de incapaz e o outro (o peronismo não kirchnerista) querendo se desvincular da pecha de golpista.
Não há nenhuma certeza de que a experiência dará certo – nunca é demais lembrar que Alfonsín e De la Rúa não concluíram seus mandatos na data prevista. Porém, se a economia começar a dar sinais positivos e a atitude cooperativa for premiada, a Argentina será um exemplo a ser seguido, em que um presidente com foco na gestão e talento negociador lidera o seu país com base no diálogo e na construção de pontes políticas. Seria um bálsamo para a região. E dará inveja ao Brasil.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 19 de março de 2016.
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