Goste-se ou não da condução da Lava-Jato, não há como negar que ela já fez história, rompendo uma longa tradição de impunidade para políticos, burocratas e empresários envolvidos em corrupção. Não por outra razão, ela continua gozando de elevado apoio popular, três anos depois de iniciada.
Menos consensual, porém, é a avaliação sobre seus impactos no longo prazo. Na área jurídica, muito se debaterá sobre o peso das delações premiadas na condenação dos réus e sobre a duração das prisões temporárias, por exemplo. Na área econômica, a questão é o grau em que a Lava-Jato fortalecerá os fundamentos da economia brasileira. Aqui há pontos positivos e lacunas relevantes.
Em artigo na “Folha de São Paulo” (2/7/2017), Caio Farah Rodriguez defende que a “Lava-Jato impõe capitalismo a empresários”, por meio das duras cláusulas dos acordos de leniência das empresas com o Ministério Público. Segundo ele, esses acordos obrigam as empresas a respeitarem “obrigações rigorosas de integridade, segundo os mais altos padrões mundiais”, sob pena de severas punições neles previstas. Com as mãos assim atadas, prossegue Caio, essas empresas atuariam como “cães de guarda” em seus respectivos mercados, vigiando seus competidores para que estes não derivem vantagem competitiva de não cumprir a lei.
Por outro lado, Érica Gorga argumenta que a Lava-Jato tem enfraquecido os fundamentos do mercado de capitais brasileiro, ao focar apenas no lado criminal dos feitos apurados e só se preocupando em recuperar os recursos públicos desviados. Em especial, não se tem dado atenção às perdas dos acionistas minoritários das empresas envolvidas nos casos de corrupção, em contraste com o que se observa nos EUA, inclusive no caso da Petrobras. Assim, Érica conclui que na Lava-Jato o “dinheiro privado está sem proteção” (“O Estado de São Paulo”, 07/03/2017).
A população também está dividida sobre o impacto de longo prazo da Lava-Jato. Pesquisa da Datafolha feita em 26 e 27 de abril — antes, portanto, da divulgação da delação da JBS — mostrou que enquanto 45% dos entrevistados acreditavam que a incidência da corrupção cairá após a operação, 44% pensavam que ela continuará igual, e outros 7% que ela aumentará.
Na minha leitura, essa divisão reflete o fato de que, apesar de o risco de ser pego em esquemas de corrupção ter aumentado, os canais por meio dos quais esses esquemas se desenvolvem seguem quase intactos.
Aqui vale voltar ao artigo de Caio Rodriguez. Como ele observa, e outros também antes dele, o maior crime desvendado pela Lava-Jato não é o desvio de dinheiro público, mas a subversão da democracia, via “uma prática mais ampla de dominação social: a aliança entre grupos políticos, empresariais e burocráticos que se valem de canais institucionais e vastos recursos públicos e quase públicos (…) com a finalidade de perpetuar ou expandir o seu poder político, econômico e social”.
Faz tempo que a política, a economia e a gestão pública são organizadas para beneficiar e proteger os incumbentes, concentrando poder discricionário, transferindo recursos e desencorajando o surgimento de novos atores. Na economia, isso envolve privilégios tributários, reservas de mercado, financiamento subsidiado, proteção contra as importações e outros favores oficiais. Em suma, uma organização que facilita a corrupção generalizada.
O que a Lava-Jato e outras investigações têm revelado são exatamente exemplos dessa forma de organizar as coisas no Brasil, dessa relação público-privada. A Lava-Jato investiga as compras superfaturadas da Petrobras, de Pasadena às sondas, passando pelas refinarias; a operação Zelotes, a prorrogação de incentivos fiscais às montadoras de veículos; a Cui Bono, fraudes na liberação de empréstimos da Caixa e do FI-FGTS; a Barão Gatuno, operações com Furnas para beneficiar investidores privados; a Bullish, irregularidades em empréstimos do BNDES à JBS; a Greenfield, aportes de fundos de pensão de estatais em grandes empresas, entre elas a Eldorado Celulose. Entre outros exemplos há a MP 252, que teria beneficiado a Odebrecht com a redução de PIS/Cofins, e a venda do Banco Panamericano pela Caixa, que teria favorecido o BTG.
Acusa-se o presidente Temer de beneficiar a JBS pressionando o BNDES, que tem 21% das ações da empresa (a CEF tem outros 5%). De fato, o governo detém ações em inúmeras empresas via seus bancos e os fundos de pensão de estatais. Quantas vezes estes terão sido acionados para favorecer A ou B, sem nunca ficarmos sabendo?
Assim, o ceticismo popular tem sua razão de ser. Capitalismo e democracia não funcionam bem quando a economia e a política operam à base de favores entre políticos, empresas e burocratas. Substituir a hipertrofia do Estado pela dos órgãos de controle não vai resolver isso e criará outros problemas. O caminho é eliminar os favores, acabar com os canais pelos quais são distribuídos e reduzir a discricionariedade das políticas públicas. Caso contrário, os atores podem até mudar, na política, na economia e na burocracia, mas a corrupção vai continuar. Aliás, como ocorreu outras vezes.
Fonte: “Valor econômico”, 07/07/2017.
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