Há cerca de vinte anos, em março de 1999, o economista Armínio Fraga, 61 anos, assumiu o Banco Central com a difícil missão de recuperar a confiança dos mercados no real. A desvalorização da moeda em relação ao dólar, promovida logo depois da reeleição de Fernando Henrique Cardoso, trouxera de volta a ameaça da inflação, na época ainda fresca na memória da população. Fraga desempenhou seu papel com louvor, e desde então é cobiçado por candidatos à Presidência para o cargo de ministro da Fazenda — primeiro foi Aécio Neves, em 2014, depois Luciano Huck, em 2018. Um perdeu o pleito, o outro desistiu de lançar-se na política, mas o economista segue interessado em colaborar com o país: desenhou um projeto de reforma do Estado que vem sendo discutido com o Executivo e com o Legislativo, e fundou um centro de estudos para políticas de saúde. Em uma sala de sua gestora, a Gávea Investimentos, no Rio, Fraga falou a VEJA sobre o governo, planos futuros e o novo PSDB.
O senhor está otimista com o Brasil?
Não, mas continuo esperançoso.
Qual o principal problema do país hoje?
São muitos: fragmentação e polarização política, um enorme desequilíbrio fiscal, desemprego, desalento, desigualdade crescente e produtividade estagnada, para citar alguns. Não é à toa que estamos com a economia patinando há tanto tempo, vinda de uma recessão tão profunda, seguida de um período fraco como tem sido o recente. O sistema em geral — a gente precisa ser honesto e reconhecer — não funcionou. A governança política foi incapaz de colocar o Brasil numa trajetória sustentada de crescimento. Temos um país muito fragilizado do ponto de vista fiscal, tanto na esfera federal quanto nos estados. Questões muito básicas de qualidade de vida, de igualdade de oportunidades, de desigualdades, não foram minimamente resolvidas. O Brasil não está pronto para crescer, falta muita coisa.
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Por onde começar?
O governo vem procurando um caminho, e a própria reforma da Previdência é um passo nessa direção. Mas considero que é um passo modesto, porque o rombo na Previdência é muito grande. Existem três grandes blocos de problemas na área fiscal. Um é o da Previdência, que é uma fonte enorme de déficit e de desigualdade. O outro é o funcionalismo, que no Brasil representa uma fatia do gasto público muito maior do que praticamente em qualquer outro país. Se somarmos os dois, chegaremos a 80% do gasto público total do Brasil. Na maioria dos países o número fica em 60% ou menos. Seria possível imaginar uma economia de 20% do gasto, o que resolveria a nossa grave questão fiscal. E há uma série de absurdos na área tributária. Estou falando de correções de rumo que poderiam atingir 9 pontos porcentuais do PIB. Um pedaço resolveria o problema fiscal, outra parte iria para o investimento público — permitindo um gasto maior e melhor na área social.
No ano passado o senhor teve encontros com Luciano Huck, que tentava articular uma candidatura à Presidência. A possibilidade de voltar para o governo o seduz?
Não tenho pensado nisso agora. Mas tenho conversado com o Luciano desde o início do ano passado, quando ele ainda considerava uma candidatura a presidente. O grupo em torno dele se mantém muito engajado, são pessoas com quem ele convive há mais tempo do que eu, com as quais me relaciono bem. Queremos identificar grandes linhas de ação para um governo, que poderia eventualmente ser o de Luciano, mas não necessariamente. A ideia é buscar soluções para os grandes problemas nacionais: saúde, educação, infraestrutura, meio ambiente, questões urbanas, desigualdades… Até o governo atual poderia, junto com o Congresso, abraçar pedaços de uma agenda como essa, quem sabe numa reforma do Estado.
“Não sou defensor do Estado pequeno. Acho que no Brasil cabe um Estado médio. No que diz respeito às estatais, porém, tenho uma postura radical: não faz sentido o Estado ter empresas”.
Quem mais está envolvido?
Tenho conversado com Luciano Huck, Eduardo Mufarej, Ilona Szabó, Ronaldo Lemos, também o Paulo Hartung. São pessoas que conheço faz pouco tempo, mas posso dizer que são admiráveis. São sérias, competentes e com espírito público. E a preocupação é geral.
Desses encontros surgiu uma proposta de reforma da Previdência que o senhor apresentou com o economista Paulo Tafner e sua equipe ao atual governo. Está desenhando outros projetos?
Isso nasceu lá atrás, quando havia a possibilidade de o Luciano entrar. Eu estava muito próximo e pensei então no que seria importante ter pronto, para não desperdiçar um possível início de governo. E ali, naquele momento, eu pensava em reforma da Previdência, reforma tributária e em uma reforma do Estado. Na tributária já tinha muita gente trabalhando, e a deixei de lado. Nas outras duas áreas fomos adiante: no caso da Previdência, com a proposta feita com Paulo e outros colegas, e também na área de reforma do Estado, com Ana Carla Abrão e Carlos Ari Sundfeld. Esta ficou um pouquinho atrasada, mas temos um projeto de lei complementar já praticamente pronto. Trata-se de uma proposta relativamente pequena em número de páginas, mas profunda, que teria como objetivo melhorar a qualidade da gestão pública no país.
Qual a linha mestra da proposta?
Precisamos de uma reforma do Estado que olhe o aspecto de pessoal. O RH do Estado precisa ser repensado. Hoje os servidores públicos não são avaliados, são promovidos automaticamente e, se têm um desempenho ruim, não são demitidos. Não quero dizer que não existam ilhas de excelência dentro do Estado. Mas o Estado em geral precisa passar por essa reforma. O que é necessário fazer é redesenhar esse sistema, tornando obrigatória a avaliação periódica de todos os funcionários, proibindo promoções automáticas por tempo e afastando aqueles que forem recorrentemente mal avaliados. Nunca vai ser, nem deve ser, igual ao setor privado. Mas deve ser realizada com muito rigor, transparência e disciplina.
E a iniciativa privada, o que pode fazer para ajudar a economia a crescer?
O motor do crescimento é principalmente o setor privado, mas ele não existe no vácuo. Não há caso de desenvolvimento bem-sucedido sem um Estado eficiente, que atue com regras claras, de boa qualidade e estáveis. Só assim haverá confiança para o setor privado apostar no futuro e investir.
E isso significa manter empresas estatais?
Não sou um defensor do Estado pequeno. Acho que no Brasil cabe um Estado médio, em razão de todos os problemas que temos de resolver. Sobretudo no front da desigualdade. No que diz respeito às estatais, porém, tenho uma postura mais radical: não faz sentido o Estado ter empresas. É uma mistura que não dá certo. Sou favorável a que as empresas tenham responsabilidade social e ambiental, visão de longo prazo, essas preocupações. Mas empresa é empresa, e governo é governo. E aqui no Brasil a história do governo como empresário é péssima, cheia de quebradeiras e roubalheiras. Não sei até quando vamos insistir nisso. Eu teria como plano não ter empresas na mão do Estado brasileiro.
A reforma tributária em discussão no Congresso, apresentada pelo deputado Baleia Rossi, é boa?
É ótima. Temos discutido a integração do Brasil ao mundo, que não tem avançado — salvo esse acordo com a União Europeia, que é uma excelente notícia. Mas o Brasil não é integrado a si próprio. Isso é gravíssimo do ponto de vista do crescimento, da eficiência produtiva do país. Quando é mais fácil para um canadense exportar para a França do que um paulista vender para Minas Gerais, temos um baita problema. E os obstáculos são dois: a barafunda tributária e a infraestrutura, que está caindo aos pedaços. É um quadro terrível. Precisamos nos integrar ao mundo, mas principalmente a nós mesmos!
“O RH do Estado precisa ser repensado. Hoje os servidores públicos não são avaliados, são promovidos automaticamente e, se têm um desempenho ruim, não são demitidos”.
O senhor se refere ao fim do ICMS, um dos impostos que a reforma pretende eliminar? Ele é o vilão?
Com certeza. Lá na origem, o ICMS foi revolucionário, mas seu desenho complexo ficou para trás. Suscita muitas distorções. Cada estado tem as próprias regras, então são 27 enciclopédias de leis. Cabe quanto antes uma modernização e simplificação drástica, que unifique em um imposto sobre valor agregado os vários impostos indiretos. A reforma em discussão no Congresso pode resolver esse problema.
Ainda que de forma não partidária, o senhor fez parte do governo do PSDB, não é? Como vê o partido hoje?
O PSDB original não existe mais. Aquele seguia um modelo social-democrata liberal, que punha o foco do Estado, sobretudo, em saúde e educação, e fez isso bastante bem. O governo FHC teve, é claro, de lidar com as questões da estabilização monetária, o que fez com grande sucesso no Plano Real e na adoção do tripé macroeconômico. Foi uma administração que montou a estrutura regulatória para viabilizar investimento em infraestrutura, dado que o Estado já lá atrás não tinha dinheiro. E hoje tem menos ainda. Era um modelo que me parecia muito bom, inclusive por sua postura progressista com relação a costumes e temas identitários. Nunca fui filiado, mas, vamos dizer assim, fui sócio-atleta do PSDB com muito gosto.
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E esse não é mais o PSDB de hoje?
O PSDB teve os seus pecados e também fez parte desse período triste da história do nosso país. Talvez em menor grau do que outros, mas fez, infelizmente. O PSDB original acabou, e está surgindo um novo partido com o mesmo nome. Aliás, nome de partido não vale muito por aqui. Vamos ver o que vem por aí.
O senhor está criando um centro de estudos para pensar sobre saúde. Qual seu objetivo?
A ideia é reproduzir o que já existe em abundância na área de educação. Há várias fundações, institutos fazendo trabalhos primorosos, dedicando tempo e recursos, e obtendo bons resultados. E na área da saúde existe muito menos desse tipo de esforço. A ideia é entrar nessa área. O instituto tem foco único: participar do debate sobre política pública na área da saúde. Não é um instituto de medicina ou de ciência. Será um instituto voltado para o desenho do sistema de saúde e como fazê-lo funcionar melhor.
O que o senhor faria emergencialmente para que a economia desse um respiro?
Não existe mágica. Seria preciso começar de cima para baixo. Espero que o governo se acalme, defina melhor seus rumos e siga uma linha mais iluminista. Também que seus integrantes se entendam entre si, eliminem as posições mais radicais, às vezes exóticas… Mas isso é mais sonho que qualquer coisa. Concordo com parte da agenda econômica do Guedes, uma agenda bem liberal… Mas o resto vejo com certo receio.
Fonte: “Veja”