Em minha última coluna discorri sobre a tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política. Argumentei que o desafio exigia liderança esclarecida por parte do Executivo. De lá para cá a tormenta recrudesceu.
Já não é de hoje que o governo vem dando sinais preocupantes. Ataques constantes à imprensa. Rejeição à política e ao diálogo. Repressão ao terceiro setor e à cultura. Desdém pela ciência, meio ambiente, questões identitárias, pela própria democracia. O vídeo da reunião de abril confirmou de forma assustadora esses sinais.
Resulta daí grande incerteza. E não surpreende, portanto, que o investimento nacional esteja há tempo parado em seu menor nível histórico.
No campo econômico, a agenda pouco evoluiu. A privatização, a PEC Emergencial (de natureza fiscal) e a abertura da economia não andaram. As cruciais reformas tributária e administrativa não foram sequer apresentadas.
O ambiente político anda crescentemente tenso, como no título do livro “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena Vieira, colega aqui nesta Folha. O governo parece se alimentar do confronto. Chama a atenção nesse contexto a montagem de uma base de apoio em linha rejeitada na campanha. Sugere uma guinada para modo de sobrevivência. Não é um bom sinal.
Independentemente do rumo que a política brasileira vier a tomar, cabe um alerta quanto ao cenário econômico.
A crise econômica tem suas raízes nas equivocadas escolhas da gestão de Dilma Rousseff, amplamente debatidas, embora não devidamente absorvidas. Meu resumo: modelo econômico velho (intervencionista, de baixa produtividade) e crise de confiança por descontrole fiscal a partir de 2014 (fato frequentemente esquecido).
A despeito da aprovação da reforma da Previdência e da introdução do teto para o gasto público, que impactaram positivamente os mercados, faltam ainda condições objetivas para que o teto seja cumprido a médio e longo prazos. Como resultado, o investimento público, que já vinha baixo, caiu para próximo de zero. As despesas livres foram também espremidas e se aproximam de um limite mínimo. Houve sim estabilização da dívida pública (como proporção do PIB), mas de maneira insustentável.
Nesse contexto chega o vírus. O governo saiu gastando agressivamente em saúde e assistência social, corretamente, mas sem planejamento. Como nossa convivência com o vírus pelo visto vai durar bem mais do que se imaginava, o buraco fiscal deve aumentar bastante. Estima-se um déficit primário que pode neste ano chegar a inimagináveis 12% a 15% do PIB (num cenário em que o PIB caia entre 6% e 10%). A implacável aritmética levará a dívida pública dos atuais 75% para mais do que 90% do PIB.
O orçamento chamado de guerra (que veio em boa hora) acertadamente proíbe que os gastos extraordinários adentrem 2021. Mas as pressões para mais gastos serão enormes. A despeito das regras legais, há risco que ocorram (lembremo-nos aqui que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi violada a partir de 2014). É bem possível que ano que vem a dívida se aproxime de 100% do PIB.
As enormes e crescentes necessidades de financiamento do setor público forçarão um encurtamento no prazo da dívida. Vejamos como. Um aumento do endividamento como o que está programado gera insegurança e reduz a demanda por títulos de longo prazo. A consequência direta é que sobe o custo da dívida de longo prazo, o que já está ocorrendo. No limite, a demanda pode secar completamente, como em 2002. Nesse contexto, o Tesouro é obrigado a encurtar o prazo de suas captações.
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Esse encurtamento pode ocorrer através de vários mecanismos, que a não especialistas parecem misteriosos. Alguns envolvem o Banco Central. Mas no final das contas, o que importa é que o prazo da dívida pública em poder do público vai encurtando. Ou seja, parte da dívida vai se transformando em uma quase moeda.
O encurtamento reduz o custo do financiamento, mas cria a dependência de rolagens frequentes e grandes da dívida. Quando em algum momento os financiadores se assustam, as taxas de juros de curto prazo também ficam pressionadas. Parte do dinheiro pode inclusive querer sair do país, o que pressiona também a taxa de câmbio e, eventualmente, a inflação.
Como bem advertiu Edmar Bacha em evento quinta-feira passada na Câmara dos Deputados, não precisamos ir muito longe para vermos que inflação pode coexistir com recessão: basta ir à Argentina (ou consultar nossa própria história).
Temos assim diante de nós um colossal desafio para 2021 e adiante. Considero gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB, especialmente com prazo encurtado. Algumas economias avançadas podem fazê-lo, mas não o Brasil, com seu histórico de inflação, confiscos, controles de câmbio e moratórias. Temos que sair dessa! Para tanto, será necessário fazer um ajuste fiscal de 4 a 5 pontos do PIB. Assim se garante que a dívida entre em trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas.
Além do ajuste macroeconômico, será necessário obter recursos para investimentos públicos em áreas como saúde, tecnologia e infraestrutura, algo como quatro pontos do PIB. A soma bate sim em 8 a 9 pontos do PIB. Não podemos nos iludir —esse é o tamanho do desafio. Tenho plena convicção de que valeria a pena enfrentá-lo.
De onde viriam os recursos? Cabe aqui o que no mundo empresarial seria chamado de um benchmarking. No caso, uma comparação com outros países, em busca de oportunidades para mais economia e eficiência. No Brasil, os gastos com Previdência e funcionalismo atingem cerca de 80% do total das despesas públicas. Na esmagadora maioria dos países esse número não passa de 60%. Se as duas contas fossem para 60%, cifra ainda alta, daria para economizar até sete pontos do PIB (20% dos 35% do PIB de gastos totais).
Como? Do lado da Previdência, com uma reforma adicional que inclua os estados e elimine algumas folgas nas regras. Assim seria possível se obter um total de três pontos por ano. O projeto coordenado por Paulo Tafner em 2018 oferece um exemplo detalhado de como se chega a esse resultado.
Uma reforma da área de recursos humanos do Estado deveria gerar mais três pontos do PIB (além de melhores serviços para a população). A reforma incluiria uma redução do número de funcionários (ao longo de alguns anos), avaliações de todos os funcionários, fim de promoções automáticas, ajustes nos planos de carreira e correções de distorções (como supersalários). Seria possível simular caminhos e criar metas detalhadas.
Há ainda uma terceira fonte de recursos, que viriam de uma redução de subsídios que não fazem sentido econômico ou social. No orçamento de subsídios da União é possível identificar economias de 2 a 3 pontos, sobretudo nas regras dos regimes especiais do Imposto de Renda, que são absurdas sob o ponto de vista distributivo. Esse passo teria o benefício adicional de conferir autoridade moral ao conjunto de propostas, pois deixariam claro que as perdas seriam proporcionalmente maiores para os mais capazes de arcar com elas.
Que fique claro também que sem as reformas as perdas gerais seriam imensas e recairiam sobre os mais pobres.
No curto prazo, creio que com contenção de salários e de contratações no setor público e com a eliminação de subsídios se poderia chegar a um ajuste de três pontos do PIB. As reformas mencionadas aqui cuidariam do restante, ao longo de alguns anos.
Estamos diante de problemas enormes. Felizmente, como demonstrei, existem respostas de igual dimensão. Se adotado, o roteiro apresentado aqui porá o Brasil em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo. Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre em que estamos há décadas. Nada fazer nos garantiria um final distópico.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 30/5/2020