O presidente eleito, Jair Bolsonaro, assumiu uma postura distinta do provocador politicamente incorreto ontem em sua cerimônia de diplomação.
Para empregar o termo sempre cobrado daquele confrade por quem seu entorno nutre inexplicável admiração, o americano Donald Trump, Bolsonaro soou “presidencial”. Presidencial como Trump jamais conseguiu ser.
Talvez por isso seu discurso tenha sido eivado das platitudes insípidas que estamos acostumados a ouvir daqueles que ascendem ao poder.
Uma única frase – “o poder popular não precisa mais de intermediação” – pode despertar alguma controvérsia. Bolsonaro afirmou que as novas tecnologias permitem uma relação direta entre o eleitor e seus representantes. Não é bem assim. Elas também funcionam como intermediário. Ou será que ele também acredita que WhatsApp e Facebook são dádivas celestes, que funcionam num plano acima dos interesses humanos?
Leia mais de Helio Gurovitz:
A nababo-breguice inesgotável do esquema de Cabral
Golpe na responsabilidade fiscal
Bolsonaro refém do Congresso
Na certa Bolsonaro nem pensou nisso. Quis apenas fazer um aceno, dar um recado, marcar seu estilo. A tal “relação direta” com o povo está na alma de todo populismo. Sua frase bem poderia ter sido dita por aquele outro confrade por quem o entorno de Bolsonaro nutre compreensível repulsa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
É uma tranquilidade que Bolsonaro não tenha, até agora, demonstrado a inclinação para a mentira compulsiva e o narcisismo patológico que une os confrades Lula e Trump. Disso, ao menos, aparentemente estamos livres – embora não, lamentavelmente, de preocupações.
O estilo Bolsonaro se revelou noutra frase, dita anteontem, diante das suspeitas que pesam sobre Fabrício Queiroz, o ex-assessor de seu filho flagrado pelo Coaf em movimentações de R$ 1,2 milhão, boa parte em dinheiro vivo, ao longo de um ano – patamar injustificável para quem recebe um salário de servidor público.
– Ele tem que se explicar – disse Bolsonaro. Pode ser, pode não ser.
Pode ser. Pode não ser. Eis, numa frase, a alma do novo governo. Ela lembra o experimento imaginário do gato de Schrödinger, aquele que a física quântica não sabe dizer se está vivo ou morto até abrirmos a caixa.
Pode ser aplicada a várias outras situações que prometem trazer aflição ao novo governo. Reforma da previdência? Pode ser aprovada no primeiro semestre. Pode não ser. Arrecadação com leilões do Pré-sal? Pode ser dividida com estados e municípios. Pode não ser. Privatização da Petrobras? Podem ser vendidos pedaços. Podem não ser.
Ceder cargos no segundo escalão para conquistar o apoio de partidos no Congresso? Pode ser. Pode não ser. Militares concentraram poder demais no novo ministério? Pode ser. Pode não ser. E os evangélicos? Pode ser. Pode não ser.
Saída do acordo climático de Paris? Pode ser. Pode não ser. Mudança da embaixada brasileira em Tel Aviv para Jerusalém? Pode ser logo. Pode nem ser. Afastamento da China, nosso maior parceiro comercial. Pode ser. Pode não ser. E assim se faz um governo.
Estatísticos costumam distinguir entre risco e incerteza para avaliar o que não sabemos. Risco é aquilo que conseguimos medir por meio de probabilidades. Incerteza é o que foge à nossa capacidade de avaliação.
Os mercados continuam embriagados, acreditando que o governo Bolsonaro representa apenas riscos contornáveis e traz enormes oportunidades. Gatos vivos e escaldados sabem que a incerteza ainda é grande. Como no experimento de Schrödinger, é provável que nem o próprio Bolsonaro saiba se o que existe dentro de sua caixa é um bichano vivo ou morto. Ou talvez saiba. Pode ser. Pode não ser.
Fonte: “G1”, 11/12/2018