Em 1973, após uma proscrição de 18 anos, o peronismo retornou ao poder na Argentina. O general Lanusse, que organizou a transição no final do ciclo inaugurado com o golpe de Onganía em 1966, definiu os limites do possível: o peronismo podia participar das eleições, mas Perón não poderia ser candidato. O caudilho optou então por uma candidatura do seu seguidor mais servil, seu delegado pessoal, Héctor Cámpora, que fazia de “pombo-correio” quando “El General” estava exilado em Madri. A propaganda do “Partido Justicialista” então foi: “Cámpora al Gobierno, Perón al Poder”. Por mais fiel que tivesse sido durante anos, uma vez eleito, porém, não exatamente por deslealdade e sim por falta de rigor nas suas posições — era de temperamento fraco —, Cámpora revelou-se propenso a se inclinar para a chamada “esquerda peronista”, com certas simpatias pelos Montoneros. O resultado foi que Perón “torceu a mão” do seu antigo delfim, que acabou renunciando com dois meses de mandato. Naquela altura, a antiga proscrição tinha acabado, e o candidato foi o próprio Perón, que se elegeu com mais de 60 % dos votos.
Corta para 2019, ou seja, 46 anos depois. Temerosa de que sua taxa de rejeição ultrapassasse a de aceitação, Cristina Kirchner (CK) desistiu da sua candidatura, cedendo o lugar a Alberto Fernández e ficando como candidata à Vice-Presidência. Para que o leitor tenha uma ideia do que se trata, seria como se no Brasil em 2018 Lula pudesse ter concorrido às eleições, mas deixasse Fernando Haddad como candidato a presidente, ficando como candidato a vice.
Iniciou-se então uma operação política com todos os elementos de uma “cortina de fumaça”. Por um lado, o candidato fez uma campanha dura, usando palavras contundentes de denúncia do “modelo neoliberal” e todos os elementos do script de “candidato do povo contra o sistema”. Por outro, num contexto de prudente silêncio da candidata à Vice-Presidência, ele usava os jornalistas amigos para sutilmente deixar vazar certas mensagens: que CK estaria angustiada pela situação da filha — que está se tratando em Cuba, de uma doença de certa gravidade — e pretenderia se afastar do dia a dia do governo em caso de vitória; que o candidato tinha conversado com os economistas X, Y ou Z — um mais ortodoxo do que o outro — etc. Vale a velha frase: “Acredite se quiser”.
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Pela sua trajetória política prévia, o provável futuro presidente argentino — assumindo que o resultado das primárias seja confirmado pelas urnas em outubro — pode ser rotulado como um peronista pragmático. Não esteve no “grupo dialoguista” que estabeleceu pontes com o governo Macri estes quatro anos, mas também não se encontra entre os segmentos mais radicais associados a uma forte pregação anticapitalista que orbitam em torno de CK. Ele sabe que a repetição das políticas implementadas na época de sua agora candidata a vice seria um passaporte para o desastre. A questão-chave é: que autonomia terá para governar?
Curiosamente e sem ignorar o fracasso estrondoso de sua experiência, Macri pode deixar o governo tendo feito parte do “trabalho sujo” que qualquer governante evita ter que fazer:
1) um acordo com o FMI;
2) um ajuste fiscal parcial que terá trazido o déficit primário de 4% do PIB em 2016 para 1% do PIB em 2019; e
3) uma megadesvalorização que deixará um dólar “recontraalto” (nas nuvens) em dezembro de 2019.
Nesse contexto, com as taxas de juros absurdamente baixas vigentes no panorama internacional, qualquer governo que sinalize que adotará políticas sensatas e não tratará o capital estrangeiro a pontapés teria condições de refinanciar a dívida, apreciar o câmbio, jogar a culpa de um 2020 difícil no Macri e navegar bem de 2021 em diante. Ao mesmo tempo, o peronismo propõe adotar um “acordo de preços e salários”, algo que cheira a mofo. Resta saber se o pragmatismo prevalecerá ou, mais uma vez, se comprovará o axioma de Borges de que “o peronismo não é bom nem ruim: ele é incorrigível”.
Fonte: “O Globo”, 24/9/2019