No clímax de seu último romance, Sérotonine (ainda inédito no Brasil), o escritor francês Michel Houellebecq encena um protesto de produtores de leite da Normandia contra a importação de leite em pó de países como o Brasil (leia mais aqui). O protesto, considerado premonitório das manifestações dos coletes amarelos na França, acaba mal.
Houellebecq é um defensor intransigente do protecionismo, crítico da política comercial da União Europeia (UE) e, recentemente, elogiou o presidente americano, Donald Trump, pela retórica em defesa dos interesses do “trabalhador americano”.
Se a Política Agrícola Comum da UE lhe parece insuficiente para proteger os hábitos e a cultura do produtor rural francês, no resto do mundo os subsídios europeus são vistos como indecentes. Aquilo que, para Houellebecq, representa o avanço do “neoliberalismo”, no resto do planeta é considerado o símbolo maior do protecionismo.
Leia mais de Helio Gurovitz:
Previdência resiste ao Congresso?
Bolsonaro e o espaço de Mourão
Começa batalha da Previdência
Ao contrário do que descreve o romance de Houellebecq, o governo brasileiro aumentou ontem de 28% para 42,8% a alíquota das tarifas de importação de leite em pó europeu e também da Nova Zelândia. A medida, precipitada por pressão do ministério da Agricultura, foi celebrada em tuíte pelo presidente Jair Bolsonaro.
Não é coincidência que o principal foco de resistência às medidas liberais do ministro da Economia, Paulo Guedes, venha da pasta comandada pela ministra Tereza Cristina. O agronegócio brasileiro é a principal força econômica do país, estrela de nosso superávit comercial e protagonista dos maiores contenciosos com nações e blocos econômicos.
O liberal Guedes, em contraste com o protecionista Houellebecq, é contrário a tarifas. A teoria econômica dá razão ao economista, não ao romancista. Não faz sentido punir o consumidor brasileiro com preços mais altos para subsidiar uns poucos produtores rurais. De forma idêntica a uma tecnologia que barateia custos de produção, o comércio exterior permite à sociedade aplicar os recursos de subsídios nas atividades em que o país é mais competitivo.
A redução unilateral de tarifas de importação traria benefícios para o Brasil numa enorme variedade de setores, como demonstra um estudo da Secretaria de Assuntos Estratégicos divulgado no ano passado (leia mais aqui). O próprio estudo, contudo, recomenda medidas para compensar os setores afetados em virtude da baixa competitividade.
O caso da agricultura, em que o Brasil é altamente competitivo, é o mais sensível. Em entrevista recente, a ministra Tereza Cristina se disse contrária a um “desmame radical” do setor agrícola, que desfruta privilégios como isenção de contribuições previdenciárias, descontos nas contas de luz ou crédito mais barato do Banco do Brasil.
+ Rubens Barbosa: Política nuclear brasileira: o urânio é nosso?
No episódio do leite em pó, a tarifa pode ter uma justificativa razoável. Apenas substitui uma medida contra o dumping dos países afetados, que já vinha sendo aplicada. Na comparação, é bastante provável que a generosidade da UE com o setor de laticínios supere em muito as benesses dadas aos produtores brasileiros.
Ainda assim, é o consumidor brasileiro que sai perdendo a cada nova tarifa de importação. É sempre a maioria que paga o subsídio da minoria. A mitologia nacionalista que cerca o protecionismo só serve para alimentar o ressentimento, a decadência de economias estagnadas e o ambiente depressivo dos romances de Houellebecq.
A nova tarifa sobre o leite em pó é um símbolo das decisões econômicas que Bolsonaro deverá tomar daqui em diante. Não há resposta única. Para tirar o país do buraco, contudo, ele deveria dar mais ouvido à lógica econômica de Guedes que às queixas dos afetados pela abertura. Ela tem mais a contribuir para a felicidade do brasileiro que a nacionalidade do leite servido às crianças.
Fonte: “G1”, 13/02/2019