Duas novas ciências têm a ousadíssima proposta de romper com inclinação comum às ciências naturais e sociais de só olharem para o próprio umbigo. Querem construir pontes que superem a histórica cisão entre humanidades e ciências. Mais: pretendem integrar os conhecimentos necessários ao estudo conjunto e simultâneo das quatro dinâmicas históricas da Terra – do planeta, da vida, da natureza humana e da civilização.
A mais consolidada é a “Ciência do Sistema Terra”, que tomou corpo em meados dos anos 1980 por clarividente iniciativa da Nasa. Até 2015, avançou muito, graças ao trabalho estratégico dos pesquisadores do Programa Internacional Geosfera-Biosfera (IGBP).
Há quem exagere ao afirmar que tal ciência já teria emergido no início dos anos 1970, com a famosa “Hipótese Gaia” de James Lovelock e Lynn Margulis. Ou exorbite recuando até mesmo à lenta virada paradigmática que acabou por levar a velha Geologia a admitir a teoria dos movimentos globais da litosfera, ou “tectônica de placas”. Mas são visões que menosprezam a envergadura do desafio transdisciplinar, que só começou a ser realmente enfrentado em 1986, com o relatório da Nasa intitulado “Earth System Science”.
A segunda, bem mais audaciosa, chama-se “Ciência da Sustentabilidade”. Entre 2001 e 2011, ela só engatinhou nas páginas do periódico “PNAS” (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America). A partir de 2012, ganhou forte impulso com o surgimento da organização global “Future Earth” (http://www.futureearth.org/), em substituição à duvidosa “ESSP” (Earth System Science Partnership). E, em janeiro de 2018, foi autenticada pela primeira edição mensal da super-revista Nature Sustainability.
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As duas novas ciências querem revelar as propriedades que emergem da interação entre as dimensões vivas e não vivas da História da Terra, como diz, quase ipsis litteris, o fértil jornalista científico Reinaldo José Lopes. Desnecessário dizer que o maior complicador advém da insigne importância conquistada por uma única espécie – a do Homo sapiens-demens-ludicus – e pelas poucas civilizações que foi capaz de fazer vingar.
Outra das maiores dificuldades congênitas de tão recentes ciências está na confusão entre o multidisciplinar e o inter/transdisciplinar. O prefixo multi (muitas) não implica qualquer pretensão de superar fronteiras disciplinares. Grupos de pesquisa multidisciplinares podem juntar experts em diversas áreas com a missão de apenas acrescentar conhecimentos disciplinares a serem justapostos. Já os prefixos inter e trans (entre e através), bem similares, denotam determinação de se aprofundar metodologias e modelagens que possam ir bem além das indispensáveis subdivisões disciplinares.
No entanto, em vez de avançarem rumo a uma “inteligência da complexidade”, as duas novas ciências têm sido vítimas da fortíssima inércia teórica do “pensamento sistêmico”. Reconhecem que os sistemas com os quais lidam são complexos, mas mantêm-se prisioneiras da “teoria geral dos sistemas”, lançada em 1950 por Ludwig Von Bertalanffy. A rigor, não assumiram a crucial diferença com pensamento complexo, antecipado por Warren Weaver desde 1948 e desenvolvido, principalmente por William Ross Ashby, já a partir de 1956.
Um dos principais expoentes da primeira – a “Ciência do Sistema Terra” – é o físico teórico alemão Hans Joachim Schellnhuber. Ele chegou a anunciar, em dezembro de 1999, nas páginas da revista Nature, uma “nova revolução copernicana”. Como uma espécie de “reversão da primeira, pois ela nos permitirá olhar para nosso planeta e perceber uma entidade única, complexa, dissipativa e dinâmica, longe do equilíbrio termodinâmico: o Sistema Terra”.
Passados 20 anos, só se pode entender tamanho otimismo ao lembrar que a primeira revolução demandou cerca de um século, de Copérnico (1473-1543) a Galileu (1564-1642), passando por Kepler (1571-1630). Se tal prazo se repetisse, ainda disporíamos de seis a oito décadas para que a Ciência da Sustentabilidade viesse a absorver a Ciência do Sistema Terra, transitando da labiríntica teoria dos sistemas para a da complexidade.
Não passa de promessa, por enquanto, uma palpável redução da distância que tem separado aquilo que – em célebre conferência de Cambridge, no dia 7 de maio de 1959 – o cientista e ficcionista C. P. Snow considerou serem “Duas Culturas” (Edusp, 1ªed.: 1995). Ainda são incipientes as iniciativas que realmente compensam o reducionismo imposto pela sempre crescente – e incontornável – fragmentação do conhecimento em novas disciplinas.
O leitor interessado em boa avaliação do problema fica desde já convidado para participação (presencial ou on-line) em mais uma tarde de conversa IEA/USP, desta feita sobre “Ciências e Humanidades Sessenta Anos Depois”. No exato sexagésimo aniversário da conferência de Snow – terça-feira 7 de maio de 2019 – serão protagonistas os professores sêniores Sonia Barros de Oliveira (Geociências/USP) e Ricardo Abramovay (Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP): http//:www.iea.usp.br/eventos/ciencias-e-humanidades
Fonte: “Valor Econômico”, 24/04/2019