Há uma semana da posse do novo governo, a crônica de Machado de Assis sobre as investiduras dos gabinetes durante o Segundo Reinado é inspiradora para pensarmos as vicissitudes da democracia liberal:
“Oh! As minhas belas apresentações de ministérios! Era um regalo ver a câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças nas tribunas, algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o ministério com o chefe à frente, cumprimentos à direita e à esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos membros do gabinete anterior e expunha as razões da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava a história da subida, e defendia o programa”.
Foram 32 gabinetes formados entre 1847 e 1889. O rito só se completava quando “um deputado da oposição pedia a palavra, dizia mal dos dois ministérios, achava contradições e obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente. Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio”.
Afora a extinção da apresentação dos ministérios (de só sete pastas), a República trouxe outros desgostos a Machado: a supressão das interpelações dos ministros, com dia fixado e anunciado; e o fim da discussão da resposta à Fala do Trono.
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A imitação das instituições inglesas é patente nesses exemplos e foi objeto de escárnio da geração de intelectuais iliberais —à esquerda e à direita— que forneceram o maquinário intelectual para a montagem do que poderíamos chamar de Estado iliberal varguista.
A democracia liberal sempre foi atacada entre nós como farsa: no mínimo como ideia fora do lugar. O “rule of law” (império da lei), por ser imperfeito, era por isso mesmo considerado inatingível. Para inglês ver. E para muitos continua sendo: só é defendido quando produz resultados que interessam.
Em períodos turbulentos —em que choques produzem deslocamentos sociais de grande magnitude—, ataques à democracia intensificam-se. Os choques assumem atualmente a forma de recrudescimento violento de movimentos migratórios, colapso de regiões industriais e crise fiscal aguda. Entre nós, é produto do efeito interativo de recessão e escândalos dantescos de corrupção.
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Os choques produzem disrupção, confusão, malaise política. E consequentemente anseios por ordem. Mas a alternativa requer necessariamente democracia e “rule of law”.
A conclusão a que chegou Machado, há 125 anos, permanece válida: “Não importa, liberdade, antes confusa, que nenhuma”.
O preço da liberdade é a eterna vigilância, não a histeria. O uso retórico da morte da democracia, no entanto, mais atrapalha do que ajuda.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 07/01/2018