As questões que estão em debate no Chile, no intervalo entre a suspensão das manifestações e a convocação de uma Constituinte, são as mesmas que afligem o mundo ocidental, em especial países em desenvolvimento, onde a insegurança pública mistura-se à insegurança econômica.
Da classe média precarizada e com receio do futuro aos jovens, setores fundamentais nas manifestações formidáveis que aconteceram nas grandes cidades chilenas, há uma gama enorme de anseios e angústias que são comuns no mundo atual.
O psicanalista Joel Birman diz que a angústia psíquica surge sempre que se entra num processo rápido de modernização do espaço social. Essas mudanças provocam um grande mal-estar, pela desestruturação de valores tradicionais e o surgimento de novos valores que levam a mudanças nos campos estético, erótico, alimentar, vestimentário, familiar.
No Chile, como já vimos em outros lugares na última década, as redes sociais tiveram papel fundamental na convocação das manifestações e na disseminação de ressentimentos, especialmente por parte da juventude. O fenômeno dos “nem-nem”, jovens que nem trabalham nem estudam, presente também entre nós, teve especial destaque nas manifestações, algumas violentas, que ocorreram no Chile.
A renda per capita dos chilenos, medida em paridade de poder de compra, chegou em 2018 a US$ 25 mil, na faixa dos países de maior nível de renda do Fundo Monetário Internacional (FMI). O Brasil está na faixa logo anterior, com US$ 15 mil. Os baixos salários, que em muitos casos fazem com que famílias não poupem para aposentadoria para manter o nível de vida de classe média, levam a ressentimentos e geram frustrações que não condizem com um país de alto desenvolvimento social pelo IDH, nem com o PIB per capita de país desenvolvido.
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Por isso, a pesquisa do Latinobarômetro indica que, no Chile, 84% dos cidadãos se queixam do sistema democrático atual. Uma ampla pesquisa apresentada no Instituto Fernando Henrique Cardoso pelo francês Dominique Reynié, da Fundação para a Inovação Política (Fondapol), realizada em 42 países em sondagem internacional que ouviu 35.000 pessoas no estudo “Democracias sob Tensão”, demonstrou que os sentimentos disseminados entre os cidadãos defendem “mais ordem” mesmo com “menos liberdade”.
Mas, ao mesmo tempo, a maioria rejeita governos militares, e considera a democracia o melhor sistema político existente. Porém, em relação ao estado da democracia, 51% da média mundial acreditam que “a democracia funciona muito bem ou bem” em seu respectivo país.
O Brasil está bem abaixo dessa média, pois apenas 23% consideram que aqui a democracia funciona bem. Só estamos melhores que a Croácia. As maiores preocupações do brasileiro são hoje o desemprego, a insegurança, a desigualdade e a perda do poder de compra.
O apoio à democracia também esbarra na busca de eficiência do sistema, pois 30% dos entrevistados gostariam de ter à frente do governo “um homem forte, que não se preocupe com o parlamento nem com as eleições”.
Dominique Reynié considera preocupante esse índice, e destaca que, pela primeira vez o mundo democrático é confrontado com o fato de que os países que mais produzem riqueza hoje não são democráticos.
Mesmo que existam dados para preocupação, como constatar que regimes militares são apoiados por 21% dos cidadãos – o Brasil puxa essa média para cima, pois entre nós 45% preferem esta hipótese -, Dominique Reynié acha que existe espaço político para aperfeiçoar o sistema democrático, que ainda é o preferido no mundo.
O embaixador do Chile no Brasil, Fernando Schimidt, diz que em seu país, apesar do grau de violência alcançado nas manifestações – ou talvez até por isso mesmo -, houve condições de aproximar os partidos não radicais para um grande acordo nacional que desembocará na Constituinte, depois de uma consulta popular.
Fonte: “O Globo”, 15/12/2019