A vitória esmagadora de Alberto Fernández sobre o presidente Mauricio Macri nas prévias realizadas ontem na Argentina, conhecidas pela sigla Paso, deixam o kirchnerismo a um passo de voltar ao poder nas eleições programadas para o dia 27 de outubro.
A chapa kirchnerista Frente de Todos, que tem Fernández como candidato a presidente e Cristina Kirchner a vice, derrotou o Juntos por el Cambio, de Macri, por 47,4% a 32,2%. A vantagem de mais de 15 pontos percentuais supera a apontada em todas as pesquisas.
Seria mais que suficiente para dar ao kirchnerismo a vitória já no primeiro turno. Depois das prévias – em que são eliminados candidatos com menos de 1,5% dos votos –, para vencer a eleição é necessário obter mais de 45% dos votos ou mais de 40% com uma diferença superior a dez pontos sobre o segundo colocado. Basta Fernández repetir o resultado de ontem para ganhar com folga.
Macri venceu apenas em seus redutos eleitorais, a cidade de Buenos Aires e a província de Córdoba. Na Província de Buenos Aires, cujo governo não inclui a capital, o kirchnerista Alex Kiciloff venceu com 49,3% e seria também eleito no primeiro turno.
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Para Cristina, a vitória demonstra o acerto político da estratégia de candidatar-se a vice, mantendo a imunidade que a tem blindado nas investigações que pairam sobre seu governo e garantindo que a pauta eleitoral seria marcada pelo debate em torno da situação da economia, não da corrupção.
Além de vários casos de desvios e propinas, Cristina é acusada de envolvimento na morte misteriosa do procurador Alberto Nisman, bem na véspera de denunciar o papel suspeito dela num acordo para encobrir a cumplicidade do Irã no atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina, que matou 85 pessoas em julho de 1994.
Fernández tem um perfil mais sereno na política e mais moderado na economia. Antes de aliar-se a Néstor Kirchner e de chefiar seu primeiro gabinete entre 2003 e 2008, foi ligado ao liberal Domingo Cavallo e participou da campanha derrotada do ex-presidente Eduardo Duhalde, em 1999. Foi negociador em tratados comerciais e desempenhou papel fundamental nas tratativas financeiras do Mercosul.
O fracasso econômico da gestão Macri foi o fator central na derrota humilhante de ontem. Macri foi eleito com a promessa de restabelecer a credibilidade internacional, equilibrar as contas públicas, deter a inflação e retomar o crescimento. Só conseguiu fechar um acordo de US$ 50 bilhões com o Funco Monetário Internacional (FMI) em junho passado.
Em três dos quatro anos de governo, o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu. A estimativa para este ano é de queda de 1,2%. De 25% em 2017, a inflação subiu para 44% na previsão para 2019, bem acima dos 30% previstos no acordo com o fundo. No primeiro semestre, Macri aderiu à demagogia do congelamento para tentar conter os preços.
Apesar da melhora em alguns indicadores fiscais, o governo continua no vermelho. O déficit primário, de 2,6% do PIB em 2018, está estimado em 0,3% para 2019. A dívida pública fechou o ano passado em 87% do PIB. A dívida externa beira os 60%, e a necessidade de financiamento do governo supera 15% do PIB. No último ano, o peso argentino perdeu 35% do poder de compra.
De modo semelhante ao que ocorreu com Jair Bolsonaro e o PT no Brasil, Macri subiu ao poder na esteira de um forte sentimento anti-kirchnerista. Sua eleição em 2015 representou um voto de protesto contra anos de corrupção, incúria fiscal e negociatas.
O resultado de ontem demonstra, contudo, que o antiesquerdismo tem seus limites. Quando um programa liberal não obtém resultados econômicos, a população se desencanta. Num país onde a política vive uma situação de polarização aguda há muito mais tempo que o Brasil, o efeito do desencanto é previsível: os argentinos abraçaram com força a versão light do kirchnerismo oferecida por Fernández.
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Inúmeras questões pairam sobre como, confirmada a vitória em outubro, ele governará o país. Que fará para conter o grave desequilíbrio fiscal que continua a arrastar a economia argentina ao buraco negro da inflação com estagnação? Qual será sua relação com o programa que Macri fechou com FMI, atacado como draconiano na campanha?
E com o Mercosul, o Brasil e Bolsonaro, que não escondeu a preferência por Macri desde antes de assumir? Mais importante, o que o fracasso de Macri tem a ensinar politicamente a Bolsonaro e aos líderes da nova direita latino-americana?
Diante da dificuldade enfrentada por Bolsonaro na economia, será que estaremos, como escrevi em junho, diante de uma reedição do efeito Orloff dos anos 1990? As eleições municipais brasileiras do ano que vem trarão uma primeira pista.
Fonte: “G1”, 12/08/2019