Devido às minhas raízes, em 2001 fui chamado muitas vezes a participar de programas de televisão para analisar a evolução da crise argentina da época, associada aos estertores do regime de convertibilidade. Naquela ocasião, eu repetia: “É impossível sair da crise econômica sem resolver a crise política”. Em essência, configurava-se uma situação na qual era necessário tomar medidas muito duras, em momentos nos quais o governo era fraquíssimo. Depois de De la Rua ter saído da Casa Rosada de helicóptero e, após um pequeno interregno caótico, ter sido substituído por Duhalde, o problema político, mal ou bem, foi equacionado, porque o novo presidente passou a ter comando inequívoco sobre o país e, especialmente, a ter espaço no Congresso, onde nos meses anteriores De la Rua não conseguia aprovar rigorosamente nada. Quando, após a confusão inevitável trazida pela desvalorização do peso, a Argentina finalmente saiu da crise, houve uma injeção de confiança que gerou anos de crescimento, depois desperdiçado pelos Kirchner com a exacerbação do intervencionismo estatal. O país já não tinha mais a economia simples do século XIX, quando um estadista estrangeiro ao conhecer o país teria declarado que “a Argentina cresce de noite, quando seus governantes dormem”, nem tinha se tornado uma Suíça, onde as instituições funcionam como um relógio, e o país segue seu curso mesmo que os políticos não se entendam. O ponto a ressaltar é que as boas relações entre o Executivo e o Legislativo se revelaram chave para a normalização do quadro.
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A Argentina e seus fantasmas
Os Estados e o “timing”
O Brasil de 2019 não é a Argentina de 2001. Não há uma convertibilidade prestes a explodir — e isso faz uma enorme diferença. Há, porém, um perigoso denominador comum: no Brasil de 2019, assim como na Argentina de 2001, o tempo do Executivo e o tempo do Legislativo são muito diferentes entre si. E isso é um problema grave. Em situações assim, a economia em geral se ressente. Infelizmente, porém, os economistas pouco podemos fazer quando a saída da crise passa pelo entendimento político. Nossa profissão não nos dá os instrumentos para resolver o problema se o Executivo e o Legislativo falam línguas distintas.
O Brasil tem em torno de 30 partidos com representação no Congresso. O partido do Presidente, por mais que tenha experimentado um boom entre as eleições de 2014 e 2018, elegeu 10 % do número de deputados. Trump pode se dar ao luxo de ignorar Nancy Pelosi, porque os republicanos lhe dão apoio e mesmo que os democratas queiram infernizar sua vida, o Senado tende a barrar qualquer tentativa radical emanada da Câmara. Nada mais diferente em relação à composição de nosso Parlamento, onde o Governo sozinho não tem voto nem para aprovar projetos honoríficos.
Coloque-se o leitor na posição de um casal jovem que está pensando em assumir um empréstimo para adquirir sua casa própria. É natural que o casal se questione acerca do contexto em que, nos próximos anos, terá que arcar com prestações mensais que onerem uma fração significativa da sua renda. A grande pergunta é: “E se um de nós ficar desempregado?”. Indo direto ao ponto: “Será que dá para ter confiança de que isso não irá acontecer, no meio desse ambiente tão confuso?”.
E um grupo empresarial, interessado em adquirir os Correios, cuja privatização dependerá dos políticos, que vivem em permanente estranhamento com o Executivo? Será que vai investir milhões de reais para fazer os estudos técnicos e estar em “ponto de bala” para fazer um lance pela empresa, sem saber se o projeto de privatização será aprovado?
Os economistas usam a expressão “animal spirit” para se referir a um estado de ânimo difuso que faz com que os agentes econômicos se interessem em investir e tomar decisões envolvendo riscos que afetam o dia a dia da economia. Repito então, aqui, o que já disse muitas vezes: dialogar é preciso. Sem uma maior harmonia política, o risco é que o animal spirit brasileiro continue mergulhado em profunda letargia…
Fonte: “O Globo”, 22/10/2019