Nenhuma questão revela tão bem a ignorância que cerca a reforma da Previdência quanto o debate em torno do Benefício de Prestação Continuada, ou BPC, o montante transferido pelo governo a deficientes ou idosos pobres, sem tempo de contribuição que lhes valha uma aposentadoria. Já é quase consenso que a proposta para o BPC enviada ao Congresso será excluída no relatório final da reforma. Por ignorância.
Verdade que ela tem defeitos, mas não os apontados pelos críticos. Um grupo estridente de políticos que vai do ex-governador paulista Geraldo Alckmin ao pedetista Ciro Gomes, de capitães do PSL a artistas do PSOL, considera “absurda” a ideia de pagar menos de um salário mínimo aos beneficiários, que consta do texto original.
É uma opinião descabida – e não é difícil entender por quê. Primeiro é preciso explicitar a situação atual do benefício e a sugestão enviada do governo. O BPC é concedido a cerca de 2 milhões de idosos depois dos 65, desde que a renda per capita em sua família seja inferior a um quarto do salário mínimo. O valor mensal equivale um salário mínimo (não há 13º salário). Recebem também o benefício 2,6 milhões de deficientes.
A reforma do governo trata apenas ao BPC recebido pelos idosos pobres. Propõe que, em vez de 65 anos, eles comecem a recebê-lo aos 60 e que, em vez de um salário mínimo, até os 69 anos recebam R$ 400. Só aos 70 anos passariam a ganhar o mínimo.
Leia mais de Hélio Gurovitz
Bolsonaro descobre a política
Guedes e o conflito na Previdência
Câmara já dilui Previdência
Para criticá-la, três questões devem ser feitas sobre a proposta: 1) qual seu efeito no combate à pobreza (objetivo original do BPC pago ao idoso)?; 2) qual seu efeito na renda de quem recebe o benefício?; 3) qual seu impacto no Orçamento público?
A questão mais fácil de responder é a última. De acordo com dados próprio governo, referendados pela Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), num cenário em que o salário mínimo é reajustado apenas pela inflação (sem ganho real), ela representaria uma economia de R$ 28,7 bilhões aos cofres públicos num período de dez anos (R$ 2,1 bilhões nos primeiros quatro).
As despesas com o BPC cairiam de 0,76% para 0,66% do PIB em uma década (e para 0,71% sem a reforma). Para que a economia em dez anos equivalesse a zero, o valor do benefício concedido entre os 60 e 69 anos deveria ser de R$ 520. Caso o salário mínimo fosse reajustado na proporção do PIB (além da inflação), de R$ 594.
Também não é difícil responder à segunda questão. De acordo com cálculos do economista Carlos Góes, supondo uma inflação de 6% ao ano, ganhar R$ 400 entre 60 e 69 equivale a uma redução de aproximadamente 5% na renda sobre ganhar um salário mínimo entre 65 e 69. Para que os ganhos fossem equivalentes, caso se desejasse manter o mesmo ganho no período, o BPC teria de valer R$ 421.
Nenhum dos números, como se vê, exige que o BPC seja aumentado para um salário mínimo caso se deseje o equilíbrio no Orçamento ou na renda familiar do idoso. Será que o combate à pobreza exige isso?
A levar em conta o exemplo internacional, vincular benefício assistencial ao salário mínimo é mais uma jabuticaba brasileira. Num levantamento dos economistas Fernando Nery e Paulo Tafner para o livro Reforma da previdência, dentre 27 países, só Brasil e Venezuela fazem isso.
Na China e na Índia, o benefício é de 5% do salário mínimo. No Peru, na Colômbia e no Equador, 15%. Canadá: 30%. Argentina: 50%. México, França e Austrália: 55%. Estados Unidos: 60%. Rússia: 70%.
O motivo para isso, como Tafner explica de modo primoroso em artigo publicado semana passada no site Infomoney, é que o objetivo do benefício assistencial deve ser tirar o idoso que o recebe da linha da pobreza, não garantir a ele uma renda mínima. No Brasil, essa linha estava em R$ 387 em 2017. Hoje fica pouco abaixo dos R$ 400 sugeridos na proposta do governo.
Qualquer real despendido acima do valor capaz de tirar o idoso da pobreza significa menos verba para combatê-la noutros setores – sobretudo a pobreza infantil. Nenhum país quer cuidar de seus idosos pobres à custa de suas crianças pobres. Só o Brasil.
Tafner levanta ainda uma distorção absurda estabelecida pelas regras do BPC, que não será corrigida se o Congresso mantiver a lei atual. Se um idoso que contribuiu ao longo de toda a vida se aposenta, o valor que recebe entrará no cálculo da renda per capita da família e evitará que sua mulher tenha direito ao BPC. Se um idoso que jamais contribuiu recebe o BPC, esse valor não entra no cálculo da renda per capita – e sua mulher terá direito a outro salário mínimo a título de BPC.
Um casal de que jamais contribuiu ganhará, portanto, o dobro daquele em que um dos cônjuges sempre contribuiu. Tal distorção tem incentivado, diz Tafner, brasileiros acima de 50 anos a contribuir menos, para garantir ao casal direito a dois BPCs aos 65.
Numa proposta alternativa, Tafner sugere uma tabela progressiva no valor do BPC, que seria antecipado não para 60, mas para 62 anos: R$ 400 até 64, R$ 500 até 66; R$ 600 até 68; um salário mínimo daí em diante. Haveria, segundo ele, uma ganho de 2% na renda do beneficiário, sem nenhum custo fiscal. De quebra, deveria ser corrigida a distorção no cálculo da renda familiar per capita.
O fetiche do salário mínimo tem cegado os políticos e o país para uma discussão madura sobre o BPC – e sobre a Previdência em geral. Não é difícil corrigir a distorção do BPC, nem melhorar a proposta do governo. Basta saber fazer contas, em vez de repetir slogans mofados que só servem àqueles que têm interesse em manter o statu quo.
Fonte: “G1”, 08/04/2019