Começo a examinar aqui algumas teses político-jurídicas supostamente articuladas para conter “excessos da Lava-Jato”. Conhecendo a prática do Direito Penal no Brasil, sabe-se que advogados, juristas e juízes sempre encontraram teses para tudo. Basta acompanhar um debate no STF — longas argumentações, na técnica jurídica, para sustentar verdades perfeitamente opostas.
Por exemplo: a prisão em segunda instância é ou não constitucional?
Há teses para os dois lados.
O que fazer? Vai aqui uma sugestão. Examinar as teses dentro do contexto em que foram criadas.
Esclarece muita coisa, espero.
Criminalização da política: a expressão tem sido utilizada para atacar a Lava-Jato, em especial, e as ações de combate à corrupção em geral, envolvendo políticos e seus partidos. Diz que certos promotores e juízes têm uma visão negativa do exercício da política, enxergando só roubalheira e troca de favores, cegos para a arte de propor e negociar a implantação de projetos de governo.
Por exemplo: criminalizar a política seria não perceber que a negociação de cargos é parte do processo legítimo de formar maiorias — e não uma simples compra de votos.
Do mesmo modo, criminalizar a política seria não perceber que a distribuição de verbas públicas faz parte do processo legítimo de administrar.
Nessa interpretação, promotores e juízes — todos sabem quais — seriam moralistas xiitas, querendo jogar todos os políticos na fogueira da Lava-Jato.
Foi com base nesse entendimento que deputados e senadores aprovaram a lei de abuso de autoridade, com o apoio de magistrados de cortes superiores. Justificaram: tem que colocar um freio na Lava-Jato porque senão ela vai avançar contra a classe política.
Mas, olhando os fatos, a Lava-Jato não pega políticos, pega políticos ladrões. Não avança contra a classe política em abstrato, mas contra membros da classe política que colocaram nos seus bolsos ou no caixa de seus partidos um dinheiro que não lhes pertencia. Dinheiro do público.
Ora, quem criminalizou a política? Agentes públicos que apanharam a corrupção ou políticos que se corrompiam há muitos e muitos anos?
Criminalização da atividade empresarial: a lógica é a mesma. A expressão quer dizer que a Lava-Jato, no fundo, considera criminosa toda a atividade no mundo dos negócios, especialmente dos grandes, sobretudo as empreiteiras. Procuradores e juízes da operação seriam xiitas contra o capitalismo.
A contraintepretação vai na mesma linha. A história econômica mostra que, em qualquer país, sempre há o risco de se cair numa modalidade conhecida como “crony capitalism”, o capitalismo de amigos, arranjo entre empresários e políticos e agentes públicos. As empresas financiam eleições, os políticos e agentes distribuem facilidades (“boas” leis e “bons” negócios). Assim, as empresas não precisam ser eficientes, basta ter “bons” amigos no governo e na política.
No comunicado em que informou sobre o processo de delação premiada, a direção da Odebrecht diz mais ou menos o seguinte: a companhia sempre foi de ponta, não precisa dessas práticas.
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O capitalismo de amigos cresceu no Brasil sem restrições, em larga escala. De novo: quem criminalizou a atividade empresarial, a Lava-Jato que apanhou as falcatruas ou os empresários e políticos que organizaram e apitaram o jogo dos negócios facilitados?
Empresas brasileiras capturadas na Lava-Jato foram também apanhadas nos EUA, como a Petrobras e a Odebrecht. E chama a atenção uma diferença de tratamento. Nos EUA, acordos de leniência saíram rapidamente, com pagamento de pesadas indenizações e liberação das companhias para que voltassem a atuar normalmente.
No Brasil, o que está destruindo empresas — e empregos — não é a Lava-Jato, mas um emaranhado jurídico que impede o fechamento de acordos de leniência, com negociações com diversos órgãos, em um processo sem fim.
Não, a Lava-Jato não é contra o capitalismo. É contra um capitalismo de compadres, que muita gente tenta restabelecer.
(Continua com análise da tese do “cerceamento da defesa”)
Fonte: O Globo, 22/08/2019