O êxito do governo de Jair Bolsonaro depende, essencialmente, de reformas para vencer dois desafios cruciais: 1) evitar a insolvência fiscal, o que depende da reforma da Previdência; e 2) adotar medidas para elevar a produtividade e, assim, expandir o potencial de crescimento da economia. Há, além disso, mudanças vinculadas a promessas de campanha, voltadas para os costumes e a segurança pública.
A complexidade da agenda dificilmente tem paralelo no País. Já vencemos outros graves desafios, como os de restaurar a democracia e superar o processo hiperinflacionário dos anos 1980 e 1990, mas em nenhum se requeria o difícil conjunto de mudanças deste momento.
É verdade que a agenda pós-Plano Real, como as da privatização e da eliminação de restrições ao capital estrangeiro, demandaram reformas constitucionais, mas as ações para enfrentar os dois citados desafios eram menos complexas. Situavam-se preponderantemente nas áreas da negociação política e do desenho de um plano para estabelecer o modelo do processo de estabilização monetária.
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Hoje, o risco de insolvência e as demandas do eleitorado criam pressões para o ataque simultâneo a todos os desafios. E muitos se empenham em preparar medidas com esse objetivo. A área econômica elabora o projeto de reforma da Previdência, cuja apresentação ao Congresso Nacional depende apenas da chancela do presidente, após seu retorno a Brasília, recuperado da cirurgia recente. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes, da Economia sinaliza propostas ousadas de privatização e abertura da economia, ligadas à produtividade. Enquanto isso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou um pacote para combater a corrupção, atacar o crime organizado e coibir crimes violentos, o que implicará mudanças de porte no Código Penal e em outras áreas da legislação.
Ainda na campanha, Bolsonaro prometeu reduzir e simplificar a carga tributária, o que reiterou no Fórum de Davos. A redução é inviável, pois as despesas obrigatórias superam a receita, o que desaconselha perdas de arrecadação. A simplificação é desejável, mas pressupõe profundas mudanças nas regras tributárias, incluindo uma saída para a caótica tributação do consumo.
Entre os especialistas cresce a percepção de que chegou a hora de implantar um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), cobrado pela União e repartido automaticamente com Estados e municípios, eliminando o ICMS, o ISS, o PIS e a Cofins. Essa é a regra em mais de 150 países. Reforma semelhante, realizada na Índia em 2018, produziu aumento de dois pontos de porcentagem no potencial de crescimento da economia. O mesmo poderia acontecer por aqui, mas isso vai requerer difíceis negociações com os governadores em torno da respectiva emenda constitucional.
Ainda que menos polêmico nos dias atuais, o projeto de lei complementar que atribui autonomia operacional ao Banco Central foi incluído nas medidas prioritárias dos cem primeiros dias de governo. As esquerdas podem mobilizar as redes sociais com o objetivo de acirrar o sentimento antibanco que ainda existe no País. E a opinião pública menos informada pode comprar a ideia errada de que o projeto vai beneficiar banqueiros.
A agenda de costumes e de combate à corrupção tem elevado potencial de resistências no Congresso e no Judiciário, além de ser propícia à mobilização dos que a ela se opõem. Aliás, já se esboçaram as primeiras reações negativas de membros desses dois Poderes tão logo o ministro Sergio Moro anunciou o projeto e começou o diálogo com áreas relevantes. A abertura da economia é consensual entre os analistas, mas tende a enfrentar oposição no empresariado industrial, o que poderia dispersar apoios à reforma da Previdência.
Se a tudo isso acrescentarmos a ausência, até agora, de uma base parlamentar majoritária, teremos uma ideia dos riscos de levar adiante todas as mudanças de uma só vez, tanto as associadas aos desafios da insolvência fiscal e da produtividade, quanto as relativas a promessas de campanha. A simultaneidade ou mesmo o ataque a mais de um dos objetivos tende a dividir e dispersar esforços e apoios.
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Deve-se lembrar, por último, que, apesar de a relação dívida pública/PIB, hoje em 76,7%, indicar o risco de insolvência fiscal, os mercados continuam investindo em papéis do Tesouro, baseados na narrativa de que haverá uma reforma da Previdência. Espera-se, além disso, que ela seja profunda e abrangente o suficiente para estabilizar em alguns anos essa relação e em seguida colocá-la em trajetória de queda. Sem a reforma ou com um projeto desidratado de suas ambições, essa narrativa desmoronará, provocando rápida queda de confiança e fuga de capitais, com todas as suas graves consequências, a principal delas a volta da inflação elevada e sem controle.
Por tudo isso, parece aconselhável que o governo, que já elegeu a reforma da Previdência como prioridade máxima, adote uma sequência que evite estabelecer concorrência com as demais reformas. Nenhuma outra é tão fundamental. Todas as restantes podem esperar. O fracasso na reforma da Previdência e seus devastadores efeitos econômicos e sociais corroeriam gravemente o capital político do presidente. O êxito que se espera do seu governo viraria simples quimera.
A sequência adequada requer não apenas, vale repetir, que a reforma da Previdência seja a primeira, como parece já estar decidido, mas também que se evite a simultaneidade com qualquer outra mudança capaz de gerar conflitos, dividir esforços, tumultuar a tramitação no Congresso ou elevar seus custos de transação. Não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País sem a reforma da Previdência. É preciso que ela tramite sozinha.
Fonte: “Estadão”, 13/02/2019